segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

6ª série

Não foi a toa que decidi ser hippie; podia ter sido punk, metaleiro ou grunge, mas optei pela hippongagem porque tenho o espírito tranquilo: gosto de ficar na boa, sem muita algazarra.

Nos primeiros dias de aula descobri que isto era impossível numa 6ª série. Tentei manter a respiração constante e a harmonia dos chácaras; quase deu certo:

- Pessoal, vamos conversar. Gabriel, senta, meu querido. Gabriel, por favor, larga teu colega. Gabriel, pelo amor de Deus, saí daí, porra!! - Eu desafio qualquer monge budista a manter a paz numa 6ª série; se ele conseguir eu coloco o Gabriel para dentro da sala.

Na terça-feira que acordei às pressas fui dar aula para a turma do Gabriel, em dia de chuva não tinha pátio, o recreio era na sala de aula - os alunos ficavam enlouquecidos.

No trajeto até a escola fiz vários trabalhos de meditação, repassei mentalmente meu grande amor pela humanidade, pensei nas condições sócio-econômicas difíceis dos alunos, na responsabilidade social militante do PT e no meu pequeno contracheque. Quando cheguei à escola já estava até empolgado; com vontade de fazer um trabalho diferente.

Entrei na sala, o Gabriel me olhou, levantou as mãos para o céu e gritou, "Jesus! Jesus voltou!!", se jogou no chão, fingiu um ataque epilético e veio rastejando até mim. Ajoelhado, com as mãos levantadas para o céu, ele implorava, "Nosso professor é Jesus, me dá a mão Jesus, me dá a mão". Ficou ali uns cinco minutos, a cabeça próxima do meu pé, pensei em dar um pequeno chute, coisa pouca, de leve - não seria para machucar, só para entrar na brincadeira.

- Gabriel, por favor, pro teu lugar.

Ele foi rindo, a turma toda alucinada. Comecei a escrever no quadro, toda vez que me virava lá estava o querido, com as mãos levantadas pro céu, como se estivesse fazendo uma prece.

Aguentei 50 minutos deste tormento, quando encerrou a manhã ainda tinha que bater um papo com a diretora.

Trabalho

A coisa mais chata no trabalho é ter que ir todos os dias. Não é como o colégio ou a faculdade que dá para faltar de vez em quando; no trabalho as pessoas contam com a nossa presença, acreditam na responsabilidade.

Eu demorei a entender isso. A primeira vez que faltei na escola, como professor, foi numa terça-feira chuvosa: acordei 6:15 da matina e era dia de dilúvio, a temperatura devia estar em torno dos 10 graus; era um despautério ir trabalhar; uma falta de respeito fazer as crianças levantarem naquelas condições. Voltei para a cama e às 8:15 a diretora do colégio ligou para o meu celular. Qualquer pessoa recém acordada é uma ingênua:

- Ricardo Monteiro?

- Ahhh...

- Aqui é Lurdes Terezinha.

- Aha.

- Ricardo, estou querendo saber se tu estás com algum problema. Estamos te esperando aqui na escola. Tu vens?

- Escola? E a chuva?

- Está forte. O senhor está gripado?

- Não, estou bem, e a senhora?

- Professor, eu estou bem, obrigada. Quero saber se o senhor pode chegar aqui às 10 :15 para dar aula na 6ª série.

- Diretora, 6ª série? Com esta chuva?

- Professor Ricardo, convenhamos. Estou lhe esperando na escola às 10 horas na aula da 6ª série e ao meio dia aqui na minha sala para conversarmos. Um abraço.

Levantei tonto e com frio na barriga: minha relação com a 6ª série não era das melhores.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Professor em Lavras

Assumi como professor estagiário do município na segunda-feira e no sábado já estava em Lavras: o pai fez questão que eu fosse dar as boas novas para a família. Ele era só orgulho e queria tripudiar na tia Neca. O filho mais novo da tia dizia que ia ser médico; estava na oitava série e a tia já contava vantagem - o pai ficava puto:

- Aquele piá, médico? Duvido! Aquilo é um burro, vai acabar trabalhando no Hiposul! Sem ofensa, Nestor.

O Nestor era irmão do pai. Nunca trabalhou e com 60 anos conseguiu uma aposentadoria; para complementar a renda era segurança noturno no Hiposul, morava nos fundos e fazia a vigia.

Para o comemorado jantar de sábado convidamos o Tio Nestor, a Tia Neca, os filhos e o marido dela. As coisas não saíram como o esperado. O pai não imaginava que eu seguia com os meus ideias, pensou que agora, empregado, eu estava conformado. Não imaginava que acordar às 6 da manha incendiava meu comunismo. Agora eu era PT por convicção.

- Pai, é um abuso uma jornada de trabalho de 40 horas! Exploração do ser humano!

- Ricardo, tu estas te queixando do quê? Trabalhas 20 horas.

- Não é esta a questão. A burrice é começar a trabalhar 7:30 da manha! Sacrifício para quê? Para que ficar carregando cruz? Era só combinar: todos começam às 9 horas. A sociedade está mal administrada.

A tia não aguentava, a preocupação da vida dela eram os filhos:

- Meu Deus, Ricardinho. Não começa a colocar ideia na cabeça dos meus guris. O Zé já está estudando tanto para tirar medicina, fez o simulado semana passada. Vocês sabem que as professoras dele já dizem que…

Quando a tia começava com este papo o pai não aguentava:

- Neca, a questão aqui não é o vestibular do Zé, daqui há mil anos. A questão é a oportunidade do Ricardo! Que ideias são essas, meu filho? Um funcionário público!

- Pai, é uma agressão acordar com um despertador. Uma agressão!

- Deus que me perdoe, tampa os ouvidos Zézinho.

Quando a tia ficava nervosa começava a fazer sinal da cruz, o que deixava o pai indignado:

- Neca, tem mosca na mesa que tu estas te abanando? Ricardo, tu tens que aprender o valor do trabalho. Acordar cedo não tira pedaço. Trabalhar nunca matou ninguém!

- Mas convém não arriscar.

O tio Nestor não tinha falado nada a noite toda, acho que o tio não tinha falado nada a semana toda, e saiu com essa. Um gênio disfarçado.

Ninguém falou mais nada: o pai resmungou o resto da noite; a tia saiu com toda a família antes da sobremesa; eu fui para a varanda tomar cerveja com o tio, ouvir mais algumas palavras de sabedoria. Ele não disse mais nada. Contou do desempenho do time do Bagé no último Gaúchão - ouviu tudo no rádio.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Chato

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O chato é uma espécie que não está em extinção. Existem desde o começo da humanidade e marcarão presença no fim. Dão palpites há milênios: estavam lá quando o homem descobriu o fogo, dizendo para não misturar com água; estavam lá quando o homem pisou na lua, avisando, “O pé direito, pisa primeiro com o direito!!”; e estavam, aos montes, na minha faculdade.

Quando o chato assume uma ideologia ele fica insuportável. Na universidade tinha muito chato que virou hippie. Era um pessoal que falava manso, mostrava um olhar profundo e, quando encontrava conhecido, dava aquele abraço demorado encostando todo o corpo.

O pior de todos era o Rangel - ele era completo: sabia tudo, interrompia qualquer conversa para dar explicações e amava todos os seres da terra. O pior chato é o afetuoso.

O Rangel estava sempre falando do cosmos, da energia e tentando mostrar os benefícios da meditação. Quando avistava um conhecido, não exitava: levantava e ia até lá dar um grande abraço; perguntava como a pessoa estava e oferecia uma série de conselhos - sempre olhando nos olhos, com os dedos cruzados na frente do corpo, como se estivesse rezando. Era um mala!

O meu pior encontro com o Rangel aconteceu num banheiro. Quando eu entrei, ele já estava lá. Havia dois mictórios, um bem pertinho do outro. Pela quantidade de cerveja que eu tinha tomado, não ia dar para segurar. Me aproximei, pedi licença e tentei mijar. Todo homem sabe que não é fácil mijar em mictório, ainda mais um grudado no outro. Às vezes, o mijo tranca. Tentei concentrar, estava quase conseguindo, quando o Rangel deu um gemido:

- Ahhhh, que beleza. É a energia reciclando! Pode sentir isso, Rica?

- Tentando.

- Concentra, Rica, concentra. Um prazer que só a cerveja dá. Este mijo infinito. Alterna, faz o fluxo ficar mais forte - ouvi o barulho do mijo do Rangel bater mais forte na laje do mictório- agora, segura, diminui a intensidade, até terminar.

Ele terminou, olhou para mim, colocou a mão no meu ombro (ele ainda não tinha lavado a mão) e disse:

- Que experiência que nós compartilhamos, companheiro!

- Rangel, eu não mijei ainda.

Ele olhou fundo nos meus olhos, fez cara de compreensivo e incentivou:

- Força, companheiro.

O homem era um chato, mas era um gênio: conseguia inspirar fundo, falar e mijar ao mesmo tempo. Eu não conseguia nem mijar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Professor II

Fui à secretaria de educação para tomar satisfações do ocorrido. Aquela convocação era uma vergonha: eu não tinha experiência nenhuma como professor. O que aconteceu com o critério da experiência profissional? Eles não tinham o mínimo de organização naquela espelunca?

Quem falou comigo, foi a psicóloga responsável pelo recrutamento. Uma moça bem acima do peso, loira, com uma camiseta escrito “I LOVE NY”. Passamos direto para a mesa dela.

- Ricardo Monteiro? Novo professor substituto do Município? Vou te contar um segredo: fui a encarregada da tua seleção. - Quando ela terminou de falar, sorriu para mim e deu uma piscada.

Não entendi nada: será que a gordinha estava de sacanagem?

- Ricardo, foram muitos inscritos. Mais de quinhentos estudantes dos cursos de licenciatura. Muita gente das letras e da matemática. - Acabou a frase e largou outro sorriso, outra piscadela.

Comecei a ficar indignado. O que a gordinha quer com esse sorriso para cima de mim? Mostrar que têm todos os dentes da boca? Dizer que minha barbada acabou?

Pensei que ela tinha me aprontado uma: olhou meu currículo, percebeu que não constava nenhuma experiência profissional, viu minha barba na foto e não teve dúvidas: "Vou colocar este barbado para trabalhar". Já não bastava uma mãe no mundo?

Fiquei indignado com a injustiça.

- Escuta, e a senhora não costuma dar valor ao currículo?

- O currículo não diz tudo sobre uma pessoa. A foto, às vezes, é fundamental! – deu outra piscadela.

A gordinha queria dar para mim! Inacreditável: ninguém nunca queria dar para mim. Quando acontece, é justo a gorda da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Foda!

Tentei ponderar, eu não iria comer ela de jeito nenhum, quem sabe ela me liberava.

- Escuta, senhora psicóloga, as coisas não funcionam bem assim. Como a senhora vê, eu estava muito bem naquela foto, mais gordinho, reforçado. Dei uma bela decaída no último mês.

Ela inclinou o corpo para perto de mim – achei que ia me beijar -, mas falou com voz baixa, em forma de confidência:

- Vou te contar um segredinho: decidi variar nesta seleção. O critério era sempre igual, só pessoal da matemática ou das letras. Todo mundo só olha o currículo. Decidi abrir oportunidades para o pessoal com cabeça mais arejada. Chamei três da filosofia desta vez! Eu não aceito discriminação! Gostei do teu jeito, barba comprida, despojado!

Ela afastou o corpo, reclinou a cadeira, sorriu e deu outra piscadela.

Era isso, as piscadelas não significavam nem broma, nem sexo. Significavam que nós éramos cúmplices na revolução da Secretaria da Educação; estávamos reformando o mundo pelo conhecimento. É pra matar!

Tentei dissuadi-la. O mundo tinha vindo tão bem até aqui, por que inovar agora; por que inovar comigo?

- Psicóloga – vi o nome no crachá – Elenara, será que é boa ideia? Fico honrado com a escolha, mas a experiência profissional é importante.

- Ricardo, eu sei que vocês da filosofia vão fazer um bom trabalho. Comprei uma briga aqui na Secretaria pensando em vocês. A educação precisa de mudança e eu quero fazer parte desta transformação!

Minha sina era ser revolucionário. O mundo fazia questão!

Professor

Eu dou azar até quando caio na sorte.

Foi assim quando decidi fingir que estava buscando emprego: fui à Secretária de Educação e me inscrevi para o estágio como professor substituto. Corria na boca pequena que era jogo ganho: a chance de ser chamado era nula. Escolhiam dez de quinhentas; o principal critério era o currículo, com a minha experiência de trabalho eu estava tranquilo.

Bolei o plano: fazia a inscrição, mostrava aquela expectativa em casa e depois, quando não fosse chamado, desilusão total – até poderia reclamar do País, que não dava oportunidade para o jovem.

Cheguei fazendo alarde:

- Mãe! Chega de moleza. Me inscrevi para ser professor substituto no Município. Quero ajudar no quadro social.

- Mas, meu filho, escola municipal não é perigosa?

- Mãe, o importante é o trabalho. O trabalho dignifica o homem - eu estava com tudo – vou avisar o pai!

Ela ficou orgulhosa, liguei para o velho no mesmo dia.

- Isso aí, pai. Estamos na disputa, torcendo. Tem que ter fé! É concorrido, mas com meu currículo, quem sabe?

- Colocou no teu currículo o trabalho aqui no Hiposul?

- Que Hiposul, pai. Ficou maluco?

- Ricardo, caso tu não sabias, vendedor é um tipo de professor. Ele ensina o que é melhor para comprar.

- Sem briga, torce por mim.

Foi a semana mais sossegada do tempo de faculdade. O pai ligava de dois em dois dias e a mãe era só mimos. Tudo uma beleza, até que tocou meu celular:

- Alô, Ricardo Monteiro? Aqui é da Secretaria de Educação, estamos ligando pela tua inscrição para o estágio como professor.

Fiquei ligeiramente tonto.

- Tu conseguiste a vaga, Ricardo.

Sentei, a panqueca de espinafre do almoço subiu até o peito.

- Aqui consta que tu vais lecionar pela manha, das 07h30min às 12h30min, para que tu possas estar na faculdade de tarde. Confere?

O pudim terminou de empurrar a panqueca, quase vomitei. Pensei: vou recusar. Mas a mãe estava parada na minha frente e quando viu minha cara de espanto atirou a pergunta:

- É da prefeitura? – Intuição materna é foda!

Fiz que sim com a cabeça; ela me pegou desprevenido.

- Conseguiste a vaga?

Fiz outro gesto afirmativo. Ela saiu pulando, vibrava, me deu beijos. Saiu correndo pela casa, ouvi os gritos lá dos fundos:

- Eu vou ligar para a tua avó. Avisa teu pai. Parabéns, meu filho!

Minha vida terminava ali!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mesa de bar 2

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A Jéssica achou graça e veio sentar na nossa mesa. Ela fazia mestrado nas Ciências Sociais e nos conhecia de vista da faculdade.

Assim que ela sentou começamos a disputa. Com o Marcão era assim, ele não aliviava - mulher na mesa era guerra. O assovio para o garçom era prova de fogo; o erro uma total desmoralização.

No começo do papo já achei que era luta perdido, ela tinha um broxe do MST. O Marcão ia grudar reforma agrária nela. Fiquei esperando... nada. Então percebi que ele estava sem óculos, não via o que estava escrito no broche. Voltei para a luta, tracei minhas estratégias: só precisava manter o papo dentro dos limites seguros.

Comecei a emendar uma piada na outra, contei todas que conhecia e assumi um risco: deixei que ele chamasse todas as cervejas, assoviava magnânimo para o garçom, era o macho da mesa; mas eu rondava a gata.

Ele ficou confuso, investia sem ter um rumo certo:

- Tu estas no mestrado das Ciências Sociais. Interessante. Há pouco vi uma reportagem sobre a Rússia e as reformas que aconteceram por lá. Repensei um pouco estas questões pelo viés trotskista…

Senti o perigo, não sei nada da Rússia, mas acho que lá teve reforma agrária. Estava tudo por um fio, fiz um ataque kamikaze:

- Marcão, meu velho, tu que é bom nisso, dá um grito para o garçom trazer mais uma cerveja.

Ele olhou espantado, achou que eu entregava os pontos; recuperei a atenção da gata.

No meio da noite a vitória parecia minha, o Marcão tomava a cerveja em goles grossos para logo chamar outra. Chamava o garçom com assobio, com grito, mão espalmada no ar, um dedo só; era uma festa, mas quem ganhava terreno era eu. Fiquei tão cheio da mim que avancei além das minhas trincheiras:

- E tu fazes mestrado em que?

- No Movimento sem Terra, não viu meu broche? 

O Marcão chegou a derrubar o copo. Olhou para o broche incrédulo, abriu um sorriso e começou.

A conversa foi até de manha, pelo que ele me contou. Eles nem perceberam quando abandonei o campo de batalha. 

Mesa de bar

O sexo move o mundo acadêmico. As teorias e dissertações são um disfarce; intelectual estuda para comer gente! É uma questão de seleção natural: quem não comia ninguém na adolescência começa a ler para conseguir destaque.

Eu era um desses. Vivia em bar com a turma, falava difícil e discutia filmes antigos. A gente só tomava cerveja barata e se o bar começasse a encher com pessoas novas a gente mudava de bar.

Nessa época meu grande amigo era o Marcão, colega da faculdade.

Para tomar cerveja com o Marcão precisava estar atento: qualquer frase rendia uma tese. Depois que ele começava só calava a boca se passasse uma mulher.

Com o tempo estabeleci uma relação infalível entre os temas preferidos do Marcão e algumas partes do corpo feminino. Era assim: questão dos índios brasileiros, bundas grandes; o FMI e a dívida externa, bundas médias ou peitos grandes; questões da existência humana (o ser e o nada), peitos de qualquer tamanho ou coxas grossas; reforma agrária, só se uma mulher sentasse no colo do Marcão. Ele adorava a reforma agrária.

No dia em que nós conhecemos a Jéssica ele estava inspirado: eu tinha escapado de decidir se o Governo devia pagar a dívida externa com o FMI e se a FUNAI devia ser mais incisiva com os fazendeiros do norte, graças a uma morena que levantou para ir ao banheiro.

Era uma noite perigosa, qualquer deslize e ficaríamos a noite inteira emprenhados nos rumos do Brasil. Procurei manter o foco:

- Marcão, fora esta questão do FMI, que calor fez hoje, não?

- Tu sabes o que é isso, Rica?

Senti o perigo, tentei escapar:

- O sol?

- Isso é o aquecimento global. Não sei se tu sabes, mas o aquecimento é uma resultante da ganância humana, que diferente do que pensam nossos colegas não é uma questão natural do homem, mas foi construída historicamente, principalmente na Europa. Os índios brasileiros…

Papo de índio brasileiro. Foda! Recorri o bar com os olhos, nenhuma bunda grande - nada! – nem mesmo média. Fiquei prisioneiro dos Guaranis dez minutos, até a Jéssica entrar. A bunda não era grande, os peitos que eram enormes. Não era o ideal para a situação; arrisquei.

Leve movimento com o queixo, apontando o alvo. Ele olhou e achou interessante; virou todo o corpo. Chegou a cair da cadeira.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Trauma

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Trauma infantil é o maior trunfo que alguém pode ter. É como a carta curinga do baralho, a gente usa na hora do aperto.

Quando a Tamara me traiu tentei acabar o namoro: falei que todo mundo tem um limite e o meu era ver ela beijando outro cara. Então ela contou do dia que colocou um vestido e o pai dela disse que ‘aquilo’  parecia um macaco; acabou me levando no trauma. Não lembro qual era a relação entre o episódio do vestido e o par de chifres, na época pareceu coerente.

A Tamara não foi justa, não é certo sair atirando à revelia. Quem produziu o trauma que o aguente! O meu eu só usava com a mãe.

Quando eu rodei na oitava série, ela ficou indignada.

- Ricardo, isto é um absurdo. Tu só tens que estudar para viver. Como foi rodar de ano? Tu vais ser lixeiro!

Isto me incomodou. No ano seguinte, quando peguei a primeira recuperação, ela veio para cima: 

- Como? De novo? Tudo de novo? O que vai ser de ti?

- Lixeiro?

- Não fala assim, meu filho. 

Eu percebi que tinha um coringa à mão e decidi usá-lo com cuidado.

Nos primeiros anos de faculdade, quando ela mostrava as oportunidades de emprego, eu negava todas com boa argumentação: ressaltava a necessidade de um bom tempo de estudo e o incomodo que seria chegar todo dia atrasado ao trabalho. Ela não aceitava fácil, mas quando a coisa atingia um ponto crítico eu dava um sinal:

- Tu ficas te perguntando o que eu vou ser?  

Ela sempre recuou, até que saiu o edital do concurso do Banco do Brasil. O sonho da mãe era o filho no B.B! Os olhos dela brilhavam quando imaginava o Ricardinho com aquela camisetinha com o logo do banco. Quando saiu o edital ela já pensava na aposentadoria integral; esquecia o trabalho que separava o hoje do amanha.

Discutimos por dias, esgotei minha argumentação. A meu favor restava a minha falta de vontade e o meu curinga:

- Mãe, eu não quero trabalhar no Banco do Brasil!

Ela decidiu lançar o desafio:

- E o que tu vais fazer, então?

- Quem sabe lixeiro? É uma profissão digna! 

O psicólogo dizia que era tirania. Aposto que a mãe dele nunca mandou ninguém trabalhar no Banco do Brasil.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Salamito

Boi

O maior inimigo do meu vegetarianismo era o salamito.

O salamito é a maior hipocrisia da humanidade. Ele não assume sua essência carnívora, ilude qualquer um. Carece da honestidade do sangue.

Por anos recusei churrasco, carne assada com batata, bife a cavalo e bife a pé com naturalidade. O formato da carne ajudava: imaginava o pedaço dentro do boi. Quando a geometria não era suficiente agarrava-me ao sangue: a lembrança das veias pulsando apagava meu apetite.

O salamito vencia todos os meus expedientes; era um inimigo disfarçado.

Contra ele eu só tinha as dificuldades do capital. O salame é uma das coisas caras do mercado, como o kiwi e o queijo gorgonzola. Em casa essas especiarias não apareciam. Tinha mortadela, presunto e (quando muito) peito defumado. Modéstia à parte, dou baile em peito defumado.

Às vezes a mãe fazia sanduíche de requeijão, queijo e peito. Queria testar meus limites. Eu tirava de letra, recusava com facilidade.

- Obrigado, eu sou vegetariano!

Mas o pecado sempre encontra um jeito de chegar até nós. Uma vez apareceu um salame italiano, coisa fina. Ficava pendurado no armário da cozinha e inebriava o ambiente com aquele perfume. Todo o dia diminuía consideravelmente, devorado pela gula da mãe.

Ela não tinha respeito pela iguaria. Colocava seis ou sete fatias grossas – toscas - em um pão francês. Comia uma fatia a cada mordida e no último pedaço do pão não havia salame. A maior heresia era quando ela cortava um naco para comer com aquele resto de sanduíche. Era insuportável! Eu levantava e saía da cozinha indignado!

- O que foi, meu filho?

- Nada, nada! Tu não entendes de nada!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Coronel Bicaco

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O maior aperto que passei em uma reunião familiar foi na casa da .

Depois de uma conversa adulta eu decidi visitar a família dela em Coronel Bicaco. Afinal, tem uma hora na vida da gente que temos de amadurecer os relacionamentos e aceitar alguns passos inevitáveis.
 
A decisão foi tomada num momento oportuno: nós estávamos sozinhos lá em casa, no meu quarto. Pela primeira vez ela tinha frouxado um pouco e estávamos na cama. Eu usava todas as minhas artimanhas - que na época eram poucas - e ela nada.
 
- Ricardo, eu não vou fazer!
 
- Por que não?
 
- Não dá! Se ao menos tu conhecesses minha família.
 
- Próxima semana eu vou lá. Juro! Agora vem aqui.
 
Ela levantou com um pulo
 
- Semana que vem a gente conversa, então!
 
No final de semana seguinte estávamos no ônibus para Coronel Bicaco. Na primeira hora de viagem percebi que a coisa não iria ser fácil:
 
- Ricardo, tu tinhas que vir com esse boné do Pateta? Ficou ridículo!
 
- Sempre uso para viajar. Posso tirar se tu não gostas.
 
- Pelo amor de Deus, coloca esse boné, teu cabelo está horrível!
 
O irmão dela foi nos buscar na rodoviária e ali eu percebi o tamanho dos meus problemas: ele cumprimentou a Rê com um aperto de mão. Fiquei apavorado! O que eu podia fazer com um homem que aperta a mão da irmã como sinal de boas vindas?
 
Fiquei esperando a reação dele, não podia me apequenar, mantive o olho no olho. Não foi um clássico olho no olho, porque ele olhava do meu boné para a minha camiseta do PT, da camiseta para as minhas alpargatas e das alpargatas para o boné.
 
Por fim, passado o susto, se apresentou, dando um toque de leve na aba do chapéu de gaúcho:
 
- Prazer. Marcelo.
 
Fiz o mesmo: dei um toque no nariz do meu Pateta, “Prazer, Ricardo”.
 
Na casa da família tinha umas 20 pessoas, os homens todos de bombachas e cada um com a sua faca; ambiente acolhedor para a minha camiseta do PT. A Rê tomou a frente, apertando a mão de todos. Eu fui atrás segurando firme o nariz do Pateta, cumprimentando um por um: levantava a aba do boné e inclinava a cabeça.
 
Foi uma tarde horrível. Todo mundo queria saber da minha família, do meu cabelo, da minha barba e do meu chapéu (acho que da camiseta eles preferiram não comentar). Eu tive cinco minutos de paz quando seu Agenor, meu sogro, serviu o churrasco.
 
Foram cinco minutos. Tomei um copo de Coca, servi a salada de maionese e escutei:
 
- O Ricardo é vegetariano, não come mamíferos!
 
Virou um reboliço! Quem expressou a opinião da família foi um dos tios da Rê, que levantou um pedaço de carne espetado no garfo e bradou:
 
- Guri, nós estamos em guerra com a natureza! A carne é nosso trunfo!
 
A mãe da Rê ficou assustada e partiu na minha defesa:
 
- Calma, cada um come o que quiser. Quem sabe ele come uma lingüiça. Porco é mamífero?
 
Começaram a discutir. Do meu lado só estavam a minha sogra e uma guria de 15 anos que não tinha voz nenhuma na família. A Rê me acusava sem parar.
 
Eu já estava querendo comer a carne para terminar com aquilo, mas as cenas do documentário povoavam minha cabeça. Fiquei entre a cruz e o espeto.
 
Então o seu Agenor chegou do meu lado, cortou um pedaço de carne com a faca dele (que era do tamanho do meu braço) e falou, perto do meu ouvido:
 
- Ricardo, essa vaca foi criada aqui no pátio, nossa amiga, ela não ia se importar de tu comeres ela. Procede?
 
- Procede, seu Agenor.
 
Ficaram todos em silêncio.
 
É como eu sempre digo, traidor do movimento é quem pára de se movimentar.  

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Festa de família

Por mais que a tia Judite fosse chata, acabou sendo uma pós-graduação para suportar eventos que reúnem mais de oito pessoas, onde cinco delas tem mais de 75 anos e três, no mínimo, pensam ter intimidade para dar palpite na nossa vida.

Nos meus 12 anos como aspirante a hippie eu passei por duas reuniões familiares que me deram segurança para encarar (rindo!) qualquer banca de pós- doutorado; na Alemanha, se fosse o caso.

Um destes testes aconteceu quando nasceu meu irmão, filho do meu pai, o Bruno. O pai ficou tão feliz que mandou convidar a mãe e a vó para a festa do batizado.

Convidei achando que era jogo ganho. Elas nunca iam querer viajar até Lavras para ver o filho do meu pai.

- Mãe, o pai vai batizar o Bruninho. Mandou convidar tu e a vó. Imagina ir até Lavras! Um absurdo!

Elas toparam. Fomos nós três e um solitário dread que eu tinha feito na semana anterior. Decidi não tirar, por convicção.

Na igreja foi tudo bem. O Bruninho me salvou: chorou três horas sem parar. O garoto é de fé, lutador da resistência.

Meu problema começou no almoço. Por uma força do destino - chamada mãe - eu sentei entre as minhas duas avós. Uma de cada lado. Eu no meio.

Naquela hora rezei, apesar de não ser religioso. Agarrei-me na primeira estrofe do Pai Nosso, que é a única que sei. Quando sentei à mesa repetia uma a cada colherada. Depois, quando as duas começaram a conversar, olhando por cima de mim, uma a cada mordida. Quando começaram a falar do meu cabelo larguei os talheres, engoli a comida e rezei como nunca.

Não adiantou. Quem reparou primeiro foi minha avó materna, a vó Flora:

- Meu neto! O que é isso aqui?! Olha Lurdes Maria, esse emaranhado de cabelo!

- Meu Deus, Maria e José! Meu senhor Jesus Cristo! Tem um bicho no teu cabelo!

Voltei a ser criança. Olhei para a mãe pedindo socorro. A vó Flora foi mais rápida:

- Minha filha. O que é isto na cabeça do Ricardo??

- Não sei, mãe. Pergunta para ele.

Golpe baixo. Fiquei só com a verdade à mão:

- Vó Flora , Vó Lurdes: isto é um dread! Um enfeite no cabelo!

- Isto é para bonito? Então tem alguma coisa de errado no teu! Não está funcionando!

As duas caíram na risada. Esqueceram a comida e passaram o resto da tarde fuçando na minha juba.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Tia Judite

As festas de família foram criadas pelas forças conservadoras da sociedade e são o meio mais eficaz de controle social. Seu principal agente de regulamentação são as tias. Elas estão sempre na espreita, procurando os desgarrados. Possuem estratégia aprimorada.

As festas são o maior obstáculo para as nossas escolhas. É impossível escapar ileso dos 80 anos de um tio, do casamento das primas ou do enterro da irmã mais velha da vó.

Na minha família eu tinha um algoz: a tia Judite. A tia não podia me enxergar sem perguntar: “e tu, meu filho, que estás fazendo da vida?”. Se falássemos dez vezes na festa, ela perguntaria a mesma coisa. Se eu reclamava, alegava esquecimento.

O mais constrangedor era quando ela me via entre um grupo de primos. Chegava com cronograma preparado. Não fazia a pergunta a esmo: entrevistava primeiro os primos com profissão regulamentada, depois buscava, em ritmo torturante, os desajustados. Por último, eu ou o primo Tonhão.

A tortura era típica das pessoas boas. Tortura no elogio. Veneno talhado na bondade.

- Aqui estão os meus orgulhos! O Carlos vai salvar essa minha dor de dente. O Jorginho é a nossa segurança. Médico na família é indispensável! Só faltava um advogado. Sempre achei que seria o Ricardo, tão inteligente. Pena! Mas tudo bem. O que tu estás fazendo da vida, meu filho?

Por causa da tia Judite eu e a mãe tivemos algumas brigas:

- Como tu não vais passar o ano novo com a família?

- Mãe, não vou! Vou ficar em casa, curtir o Faustão da virada.

- Meu filho, tuas primas vão estar todas lá! – A mãe sempre usava o argumento das primas.

- A Belinha?

- Claro. A Belinha, a Ju, a Carol, todas. – A velha sabia das coisas, eram todas primas de segundo grau, que para mim não são parente.

- Pois é, mãe. Quem sabe? E a tia Judite?

- Claro, a tia também.

- Mãe, não vou e pronto.

- Meu filho, tu estás virado em um rebelde!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Vegetariano

Depois do incentivo dos meus pais para fazer terapia procurei um profissional. Não foi difícil encontrar um bacana. Eu gostava do cara. Não concordava com tudo que ele falava, mas o homem tinha ideias interessantes.

- Ricardo, parece que tu procuras os caminhos mais complicados para trilhar!

A mãe concordava com ele. Ela disse a mesma coisa quando eu avisei que não comia mais carne, tinha virado vegetariano.

- Meu filho, tu estas sempre atrás de garoa com vento!

Em minha defesa, argumento que virei vegetariano depois de assistir a um documentário que mostra como os animais são abatidos. Fui assistir na maior boa vontade. Quem me convidou foi uma colega. Ela era hippie. Usava saia comprida, sandália e umas camisetas coloridas; a moça era uma graça. Ela que veio puxar assunto.

- Tu sabias que este salgado tem presunto?

- Não sabia, achei que era mortadela. Presunto é uma beleza.

- Mortadela também é carne. Fico pensando quantos animais são mortos para fazer este presunto. Pobre dos animais! Tem um documentário no cinema sobre isto, quer ver?

- Claro.

Fui ao cinema achando que no final quem ia comer alguém era eu. Esta história de comer carne dá ideia na cabeça da gente. Doce ilusão.

O filme foi horrível. Era vaca levando tiro, porco gritando e galinha presa em cubículo. Eu saí do cinema passando mal, a carnificina ainda descia pelas tripas quando a colega convidou:

- Vamos comer uma pizza? Eu quero calabresa!

Fui até a pizzaria. Percebi o que acontecia quando vi as rodelas de calabresa nadando no queijo. Não me contive:

- E o filme que acabamos de ver? Tu ficaste com pena do presunto que eu comi na faculdade e agora vai comer calabresa?

- Sai desta, Rica. Não dá para levar tão a sério.

- Esta rodelinha de calabresa é uma daquelas vacas. Essa rodelinha levou um tiro na cabeça!

- Acho que não. Calabresa é feita de porco.

- Pior! Essa rodelinha é um porco daqueles que gritavam desesperados.

- Rica, se tu não queres, não come. Eu estou com fome.

Naquela noite decidi não comer mais nada: nem a moça, nem a calabresa. Passei vergonha separando as rodelinhas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Entressafra

Tem uma fase da vida em que a gente não come ninguém. É difícil. Não me refiro a uma má fase (normal na vida de qualquer um) quando não se transa por alguns meses. Acontece antes; logo depois de ter perdido a virgindade, talvez depois de emplacar a segunda, é o tempo da entressafra. A gente passa um sufoco!

- Parece que o Fulano comeu alguém.

- Não acredito. Quem?

- A prima de não sei quem.

- Não conheço. Me apresenta

Quando a turma fica sabendo que alguma guria deu, brota a esperança. As conhecidas também vão dar. Mulheres costumam chamar isso de machismo, preconceito, deveriam ser mais compreensivas, é necessidade.

Nas minhas terras a entressafra foi um pouco mais longa. Só não posso dizer que era virgem no primeiro ano de faculdade, porque eu tinha tido aquela história com a Claudinha. Ela era esforçada; mas uma andorinha só não faz verão.

Foi neste afã que comecei a namorar a Regência. Eu achava que qualquer guria que estivesse fazendo filosofia ia ser liberal. O pessoal careta faz Direito ou Medicina, estas coisas que dão dinheiro. Porque se a gente não vai ganhar grana, ao menos que trepe bastante. Foi um erro. Alvejei o dardo longe do alvo. Eu devia ter desconfiado: os livros que a Rê carregava não podiam ser bom presságio.

A primeira vez que nós ficamos foi numa festa da turma. Eu já tinha bebido umas três latinhas de cerveja e fumado um pouco da tal maconha. Ocupei meu canto de sempre e assumi minha postura de predador no combate: um sorriso de baseado na cara e um embalinho que mostrava que estava por dentro da música (a música não fazia diferença, o embalinho era universal, servia de Bob Marley até The Doors).

Eu vi a Rê passar na minha frente. Ataquei:

- Cerveja?

- Não, obrigada. Não bebo.

Os sinais eram claros. Devia ter desconfiado que não comeria a Rê desde o primeiro dia.

- Ricardo, eu não concordo com a posição do professor quanto ao argumento ontológico da existência de Deus.

- Esse professor não sabe nada.

- Não é para tanto. Mas fico pensando: a essência precede a existência? O que é acidental e o que é essencial no ser?

Eu não entendia nada que a Rê falava, mas tinha uma estratégia para montar frases que fossem enigmáticas o bastante para camuflar minha ignorância. Era parecido com o embalinho universal.

- Eu acho que o acidental é a essência da existência do ser.

- É uma postura corajosa.

- Eu sou corajoso.

Neste dia foi fácil ficar com Rê, eu estava inspirado, convenhamos. Tentar o arremate é que exigiu toda a minha vã filosofia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Discussão Familiar

Sempre achei que meu pai era como a torre do jogo de xadrez (ao menos como eu imagino a torre no xadrez). Ela fica lá, parada, meio figurativa, quase coadjuvante, até resolver atacar. Quando decide, é um estrago.

Naquele dia, no Hiposul, eu estava só esperando. Enquanto abríamos o mercado eu escutava ele resmungar. Levantando a porta de ferro escutei ele murmurar, enquanto fazia força: “PT, nãããão”. Depois, arrumando as frutas na frente do mercado: “PT, PT, PT”.

Eu passei o dia atrapalhado. Errei no troco, derrubei nas frutas, deixei o leite fora da geladeira. Ele não aliviava. Uma reclamação já seria um descanso na culpa. Mas só olhava, levantava a sobrancelha e dizia:

-Éééé.

A conversa só recomeçou na volta para a casa:

- Então, Ricardo. Que história é essa de terapia?

Achei inteligente. Começamos pelo assunto mais fácil e, de leve, abordamos o difícil.

- Ideia da mãe. Ela acha que pode ajudar. Cada uma, não?

- É uma ideia boa.

- Desde quando?

- Pode ajudar nesta questão do PT!

- Como assim? PT é política, não resolve em terapia.

- Como tu sabes? Tu nunca fizeste terapia! Isto pode ser um problema, sim. Não é normal! Um guri saudável, virar PT! Tu disseste que virou PT ou PP?

- PT.

- Pena. Diz para a tua mãe que eu apoio a terapia. Procura uma em conta, que isso é problema simples de resolver. Cortando este cabelo resolve metade da questão.

-Certo. Não precisa dizer mais nada.

- Combinado. Imagina se teu tio descobre uma coisa destas.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Política Privada 2

Todos os anos, nas férias, eu visitava meu pai em Lavras. Na infância era uma alegria. Tinha vaca, cavalo, ovelha e no pátio do Hiposul um milharal. Depois que entrei na faculdade a coisa perdeu o encanto. A desconfiança do pai crescia junto com o meu cabelo; que ficava cada mês maior.

No ano que virei PT decidi não ir. Era melhor ficar no sítio em Viamão. Deitado na rede, comendo fruta do pé, lendo alguns livros. Quem sabe até aquele do Foucault. Afinal, Lavras é longe, a viagem é cansativa e o pai não ia entender esse negócio de PT.

O problema é que a mãe andava desconfiada. Ela sempre foi esquerda, mas estava preocupada. Tinha medo que meu comunismo fosse vagabundagem e que por ideologia eu não quisesse trabalhar. É a tal da Microfísica do Poder.

A coisa tomou proporções uma vez que ela me mandou procurar emprego nos classificados e, ingenuamente, respondi:

- Mãe, trabalhar nunca matou ninguém, mas convém não arriscar.

Ela nem riu. Fez um barulho com a boca, misto de “mmmmm” e “iiiiiii” e olhou com o canto do olho. Dias depois fez um telefone sem fio com o pai.

- Ricardo, falei com o teu pai. Essas férias tu vais para Lavras. Já fala com ele sobre a terapia e sobre esse negócio de PT.

Cheguei a Lavras às 6 horas da manha e ele me buscou na rodoviária antes de abrir o Hiposul, às 7:30. Tentei prender o cabelo com rabo de cavalo para ver se amenizava o impacto. Como tinha decidido não prolongar o sofrimento larguei tudo de uma vez:

- Pai, a mãe acha que eu preciso de terapia e virei PT.

Pronto, falei. Talvez ele tivesse um infarto, quem sabe eu herdava o Hiposul?

- Quê? Que terapia, Ricardo? Que PT? PT!? Que PT? Aqui não tem PT! Nem terapia!

- Virei PT, pai. Fazer o quê?

- Ninguém vira PT, Ricardo. Tu sempre foste PSDB, não pode ser PT. Tu já viste gremista virar colorado? Claro que não! Essas coisas não se fazem! É proibido!

O homem era bom de lógica.

- Aconteceu. Já fui até em passeata.

- Quê!? Que passeata? Passeata de quê? Aqui não tem passeata! Ricardo, tu não sabes nem quem é o candidato do PT à presidência!

- É o Lula!

- O Lula. Essa é fácil. Ele é candidato desde que tu nasceu.Tu não é PT e acabou!

Chegamos ao Hiposul e abrimos o mercado juntos. A conversa não tinha sido ruim, minha mesada seguia intacta.

Política Privada

Em época de eleição a gente ouve que o importante para o país é a alternância de poder e a pluralidade de opiniões. Quem fala isso esquece o quanto o dia-a-dia de cada cidadão influência na política.

Quando eu estudava filosofia todo mundo falava de um livro chamado ‘Microfísica do Poder’, do Foucault. Eu nunca li, mas gosto do título. Lembra estas coisas que acontecem no cotidiano e invadem a vida pública.

Um exemplo foi quando virei PT. Precisei prestar atenção em coisas básicas, como minhas roupas. Era impossível seguir indo para a faculdade do mesmo jeito. Afinal, eu era dos radicais, tinha o Barba ao meu lado, e coisa que esta galera da luta patrulha é vestimenta.

Interroguei meu guarda-roupa. Calça jeans velha, meio rasgada. Boa. Tênis All Star, não tinha melhor. Camiseta? Não achei adequada. Um problema. Nenhuma vermelha, nenhuma do partido. Sem camiseta do partido eu não ia parecer um dos radicais. Ia ser centro-esquerda, galera que não está com nada, não é da luta.

Lembrei que a mãe tinha uma camiseta vermelha com estrela no peito, ridícula. Ia servir:

- Mãe, cadê aquela camiseta vermelha com estrela no peito?

- Não sei. Faz horas que não uso.

- Pois quero ver se me serve. Estou engajado na luta. Sou PT.

- PT? Desde quanto?

-Sei lá, desde segunda. Cadê a camiseta?

- Ricardo, PT? Tu não sabes nem quem são os senadores do Rio Grande do Sul.

- Tem mais de um?

- Três.

- Quanta gente. Mãe, primeiro preciso me fardar, depois vejo detalhes. Cadê a camiseta?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pai

Na minha família a gente sempre fez aquela brincadeira do telefone sem fio. É aquela brincadeira que um fala pro outro, que fala pro outro, que fala pro outro e no final dá tudo errado. Lá em casa era igual: eu contava para a minha mãe e ela contava para o meu pai. No final a brincadeira saía certinho. O pai entendia tudo torto e eu tinha que me dobrar nas explicações.

Para deixar claro, os meus pais nunca foram casados. Ele mora em Lavras e tem um mini-mercado, o Hiposul. O Hiposul abre às 7h e 30min e fecha às 20h. Eu sei toda a rotina do mercado, ouvi uma porção de vezes. O papo sempre começa por: “Meu filho, tu sabe de que horas a que horas eu trabalho?”, e segue com uma longa explicação da árdua semana de laboro dele, que, às vezes, inclui os sábados.

Quando eu decidi fazer filosofia a mãe me deu um apoio, fez um telefone sem fio:

- Olha, o Ricardo escolheu um curso meio estranho. Espera, ele te conta.

- Filosofia, pai. Filosofia.... FI-LO-SO-FIA.

- Acho que eu estou ouvindo errado, Ricardo. O telefone aqui de casa deve estar com problema. Vem para Lavras que a gente se entende melhor.

Desliguei o telefone. Quando olhei para a mãe, ela estava indo na direção do computador

- Mãe, o pai quer que eu vá para Lavras.

- Imaginei. Já estou comprando a passagem na internet.

A mãe sempre foi a mão amiga na hora difícil.

Fui no final de semana. Eu e o pai tivemos uma conversa racional, pesando os prós e contras de fazer o curso:

- Ricardo, eu decidi, tu vais fazer Direito! Filosofia e Direito são iguais, a diferença é que quem se forma em Filosofia é filósofo, ou seja, nada. E não tem trabalho.

- Não é bem assim, pai.

- Ricardo, realiza: tu, filósofo! Filósofo faz o quê, Ricardo?

- Pensa! Pai, eu vou fazer Filosofia!

- Tudo bem, vai ser Filósofo. Vou reduzir tua grana. Pensar é de graça!

Pronto. Problema resolvido com o pai. A questão, agora, era com a velha. O argumento da redução do dinheiro era muito usado: a mãe não gostava muito.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Política (a passeata)

Chegando na passeata o Barba me apresentou para todo mundo.

- Este é o Rica. Grande lutador.

- E aí companheiro Rica, firme na luta?

Rica já era ruim; companheiro Rica era de cortar os pulsos. Se meu pai ouvisse eu ajudava ele a me dar uma surra.

- Firme, sempre na luta.

- Grande companheiro. Qual a tua principal frente de batalha?

Pergunta difícil, de primeira. E eu aqui desarmado. Pensei em responder a verdade: “Minha principal frente de batalha é a máquina de lavar roupa que estragou e a fechadura da porta do meu quarto que não tranca e a mãe entra quando quiser”, mas ficaria chato. Decidi resumir:

- Minha principal frente é a exploração do trabalho.

- Redução das 40 horas semanais já!- Gritou o Barba

- Redução das 40 horas!- gritou o outro companheiro.

- Redução, redução! - Engatei eu.

Até que eu me dava bem na política.

Política

Sempre odiei política. Nunca entendi aquelas pessoas com cara de espantalho segurando bandeira de partido. Porque eu votaria em um candidato que paga alguém para segurar uma bandeira?

Lá na faculdade o pessoal não pensava assim, todo mundo era engajado. Hippie do século 20 tem que entender de política e ser de esquerda. Tinha passeata, bandeirada, grito de guerra e até apito. A coisa era dividida entre a turma do PSTU, bem radical, sempre na gritaria e com barba de dar inveja em profeta e a galera do PT, que era mais suave: alguns com a barba bem afeitada, gurias interessantes e ainda por cima depiladas (um luxo).

No meio desta confusão sempre achei que guerreiro mesmo era eu, que travava uma batalha diária lá em casa, no corpo a corpo. Não é fácil passar 8 anos na faculdade ou sustentar esta barba cheia de falhas. Mas eu sei que é assim que se mostra para o mercado de trabalho que ele não manda na gente e que não somos escravos da moda.. Fazer a barba todo o dia é alienação.

Mas na faculdade não tinha papo. Ou ia bater panela ou ia ter que admitir que nas últimas eleições eu tinha votado no PSDB. Na sigla. Coisa do meu pai que me convenceu com um argumento razoável:

-Guri, ou tu vota no PSDB ou não te largo aquela grana no final do ano.

Achei justo. Votei.

Mas depois de dois anos na filosofia eu estava decidido a fazer parte da construção de um novo país. Não podia ser tão ruim: caminhadinha no centro, conversar com os amigos e jogar um charme de rebelde para as gurias.

Nesta época o Barba me convidou para ir a uma passeata grande (o Barba era PT, um dos radicais, meio passo à esquerda e virava PSTU):

- Rica, tem até candidato a presidente. Tu vai na linha de frente comigo. Emoção na certa!

Topei

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Violão

Todo hippie tem que saber tocar violão. Não é uma regra, como não poder usar roupas de marca, não poder ir ao shopping ou ter que gostar da Janes Joplin. Mas é necessário para qualquer um que queira tentar comer alguém em um luau, por exemplo.

Como eu não tinha nem ideia de como se segurava uma viola resolvi pegar um atalho. Percebi que toda festa tinha um magrão que gritava, "Toca Raul!". Não precisa ser gênio para pensar: "Tenho que aprender Raul".

Fiz isso, foi fácil. Nas festas eu espreitava. Às vezes demorava, mas o grito esperado sempre vinha, "Toca Raul", e eu, mais que ligeiro:

-Boa! Deixa pra mim. Raul é minha especialidade.

Na maioria das vezes tinha que ser rápido, porque devia ter mais gente com a mesma tática. Era só sair o grito que levantavam uns três ou quatro. A coisa não era fácil, muita competitividade.

Era necessário aprimorar a técnica. Aprender mais músicas estava fora de cogitação (eu sou péssimo com música), decidi usar a criatividade.

Primeiro tentei gritar "Toca Raul" meio pelo canto da boca para logo puxar o violão. Não deu certo. O grito saía fraco e a vez que consegui o cara que estava com o violão já engatou.

Eu precisava de mais vantagem. Precisava estar com os braços soltos para tomar a frente: agarraria o violão e ai de quem se agitasse. Alta competitividade, como expliquei.

Então lembrei do Gabi. Como o negócio dele não tinha nada a ver com mulher, topou me ajudar. Era simples. Quando tinha alguma gata em volta eu fazia o sinal: coçar o cavanhaque. Ele preparava o grito e eu o pulo. Era tudo rápido, não tinha espaço para ninguém meter a mão. Só dava eu.

A tática foi um sucesso. Eu pegava o violão seguido, mas não comia ninguém.

O Gabi que me deu o toque:

-Ricardo, mulher só dá para cara que canta Zeca Baleiro.

Eu estava perdido, Zeca Baleiro no violão é foda.

domingo, 15 de agosto de 2010

Mãe

Mãe só tem uma, graças a Deus. Eu, provavelmente, não resistiria a duas ou três.
A minha mãe tem um pouco mais de um metro e meio e é capaz de fazer um estrago de deixar qualquer sogra com água na boca.

Eu desenvolvi uma teoria, não muito filosófica, que mãe tem um dom especial. É um tipo de veneno mortal: qualquer mãe é capaz de terminar com um dia tão logo ele comece. É algo que acontece basicamente pela manhã. Deve ter relação com os sonhos, com o inconsciente, talvez com o Freud. Não sei. Só sei que "O que vai fazer hoje?" ou "Qual a programação do dia?", deixa qualquer marmanjo de pernas bambas.

Mas justiça seja feita: mãe é a única pessoa que acredita tanto na gente que acha vagabundagem um tipo de distúrbio. Foram as mães que inventaram a hiperatividade, o DDA e estas coisas. Não resta dúvida.

A minha velha era assim. Ela não aguentava me ver tranquilo o dia todo, tocando violão, curtindo uma TV e tomando mate no final de tarde (uma beleza de dia, convenhamos). Estava sempre procurando um problema, fuçando na direção da minha vida.

Ficar em casa era uma tensão. Sem aviso ela escancarava a porta do meu quarto, parecendo um furacão de um metro e meio e atacava. Sempre a mesma frase:

-Ricardo, meu filho, eu estive pensando.

Se a mãe não pensasse eu teria só metade das minhas dores nas costas. Quando ela pensava era galho na certa. Imagino que devia ficar lá, lavando a louça, preparando o jantar ou estendendo roupa e matutando, matutando, até que surgiam, não sei de onde, algumas ideias brilhantes. Como essa:

-Ricardo, tu estás deprimido?

-Quê?

-Eu estive pensando. Tu passas o dia aí, jogado, sem ânimo para nada. Não te vejo pegar nos livros! E tu estás com uma aparência de doente.

-Quê??

-É, magro, abatido. Tu precisas de ajuda? Vamos arrumar uma terapia para ti.

-Quê?? Velha, eu toco violão todos os dias e .... Vou na padaria.

Não ia colar, óbvio.

-Ricardo, tocar violão não é uma atividade. E tu não tocas nada. Nunca te vi tocar uma música.

-É um processo demorado. O avanço é gradual.

-Não quero saber. Liga para o teu pai.

Pronto, acabou com o meu dia. Ligar para o meu pai era sempre um caso à parte.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sutilezas da resistência

Ser hippie não é fácil. Eu já falei isso mais de uma vez, eu sei, mas cada vez que recordo dos tempos difíceis, bate uma depressão.

A coisa que mais incomoda é o julgamento alheio. As pessoas não entendem que não fazer nada faz parte do processo de ser hippie. Não fazer nada é estar sendo hippie. Difícil!

Ninguém entende menos isso do que a mãe da gente, que geralmente é a única pessoa que aceita nos sustentar.

A minha mãe nunca me compreendeu, a melhor coisa que ela fez foi me largar de mão. Mas foi uma difícil batalha até que eu atingisse a tranquilidade necessária. Travei uma guerra cheia de artimanhas e pequenos truques. Eu vivia nos pequenos golpes.
Quando entrei no quinto ano de faculdade a coisa atingiu um patamar crítico.

-Ricardo, quantos anos tem esta faculdade de filosofia? Tu estás tirando medicina?

A minha mãe falava tirar faculdade. Aí não dá. Para uma pessoa que fala tirar faculdade não adianta argumentar que a filosofia é a medicina da alma, coisa que eu tinha lido na parede do Adriano, bar que nós da resistência à burguesia frequentávamos.
Ela estava decidida a ganhar terreno e sentenciou:

-Se tu não trabalhas na rua vais trabalhar em casa. A partir de hoje tu fica com os afazeres domésticos. Lava a roupa da casa, a louça, organiza as coisas. Vai gastar este tempo livre cuidando de nós.

Aí fodeu!

Tinha que passar um bom tempo cuidando do lar e a lida doméstica dá um trabalho que só eu sei. Aprendi de tudo neste período. Passar aspirador no capricho, cera com pano de lã para dar mais brilho, cuidar das roupas para não manchar na máquina. Eu virei um escravo.

Mas entendi o que os pensadores querem dizer quando falam das formas sutis que a resistência assume.
Como ela não largava do meu pé, sempre cuidando se o Ricardinho estava levando a sério a empreitada, eu descobri que lavar roupa era um grande remédio. Nossa lavanderia pegava um sol especial pela manhã. Então toda dia eu lavava roupa. Colocava roupa na máquina, pegava um livro e ficava na área de serviço, olhando o movimento da máquina de lavar enquanto curtia um sol. Quando ela gritava por mim, eu respondia triunfante, ainda deitado na cadeira de praia:

-Já vou mãe. Lavando roupa.

-Cuida com as manchas, Ricardo.

-Claro, vou passar Resolv.

O alvejante me devolveu o branco da paz. Não por muito tempo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Shopping 2

Chegando no shopping fui direto para o Mc Donald's. De canto de olho eu cuidava um lado e outro. Se alguém me visse todo o esforço de quatro anos de faculdade ia por água abaixo. Ser visto no shopping com a mãe, comendo um Big Mac, é o fim da carreira de qualquer cidadão.

Enquanto eu estava lá, realizando o desejo, mergulhando aquela batata frita cheia de sal no ketchup, eu vi o Barba passeando no shopping.

O Barba no shopping era caso de chamar o Ibama. Aquela figura, no meio da praça de alimentação, com calça larga, camiseta sem gola, orelha furada, barba e cabelo formando uma só juba podia morder qualquer um.
Fiquei me escondendo atrás do Big Mac, enfiei a cabeça na batata frita. Ele não me viu.

A sessão de tortura começou depois. A mãe queria comprar uma manta. Não foi fácil. Por vezes eu o via vindo de longe, caminhando na minha direção e então tinha que desviar.
Fui seis vezes ao banheiro àquela noite. Ao menos podia reclamar:

-Viu mãe, esse negócio de Mc não faz bem para o estomago.

Quando eu não aguentava mais e estava quase me jogando nos braços dele para confessar, "Barba, eu pequei. Estava aqui no shopping com minha mãe comendo um Big Mac", eu vi o homem parado diante de uma vitrine. Uma vitrine da Nike.

Aquela era uma oportunidade. Um homem constrangido não denuncia outro homem. Nós faríamos parte de uma confraria, eu teria o Barba, o mais alternativo da galera, em minhas mãos.

Cheguei devagar, era um lance arriscado, mas a vida é tudo ou nada.

-Barba, te agradou do tênis?
-Rica? Ééé....
-Tu passeando no shopping, nunca imaginei!
-Ééé....
-Já te aviso que esta loja é cara.
-É!!!

Ficamos em silêncio um bom tempo. Pelo que pude ver por detrás da juba ele trocou de cor umas quantas vezes. Ficou vermelho, roxo e depois azul.
Decidi não falar mais nada, seria como chutar cachorro morto. Nós formávamos uma maçonaria. Eu e o Barba, traidores do movimento.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Shopping

Algumas coisas não combinam com hippies. Shopping é uma delas. Se um hippie for pego andando no shopping a única possibilidade que resta é rasgar as calças de moletom, largar a maconha, cortar o cabelo e ir trabalhar no Banco do Brasil. Não tem salvação, hippie e shopping não funcionam.

Na verdade o pessoal está coberto de razão: o shopping é o templo do consumo, a igreja do capitalista e todas estas coisas. Além do que é um saco entrar onde se vende de tudo e não ter um pila para gastar.

Isto me incomodava, pois eu confesso aos amigos: gosto de comprar. Uma jaqueta bacana, uma camisetinha nova, quem sabe uma bermuda e, uma extravagância, até cuecas. Mas não dava, ir ao shopping era correr risco.

Infelizmente uma vez eu não consegui resistir. Eu estava há muito tempo sem comer Mc Donald's (comer Mc era um dos pecados mortais da galera) e a mãe me convidou:

-Ricardo, estamos sem nada para comer hoje, quem sabe jantamos no Mc? Tem umas almôndegas da janta de ontem na geladeira, se tu quiseres requentar.

Golpe baixo, convenhamos. Requentar almôndegas? Ela já tinha percebido que eu evitava o Mc Donald's. Sabia que não estava sendo fácil para mim e queria me testar, mostrar que eu não podia.

Não é sempre que se vence. A resistência às vezes tem de ceder espaço ao poder vigente para retornar com mais força. Naquele dia perdi de vareio. Fui faceiro me lambuzar com um Big Mac.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Amor Livre

Hoje, refletindo sobre esta coisa de falhar como hippie, com o diploma de filosofia pendurado na parede dando mais fundamento à reflexão, eu vejo que várias coisas me levaram ao fracasso: a chatice de ficar sempre enrolando baseadinho de maconha, "- Rica, só mais um fininho!", a questão de usar ou não usar cuecas e os meus dilemas com a faxineira lá de casa. Mas o que me pegou mesmo foi essa coisa do sexo livre.
Aos amigos que não imaginam o que é difícil no sexo livre eu explico: não é só a gente que pode fazer sexo com quem quiser, tem a volta, a namorada também quer fazer sexo com quem quiser e ainda por cima quer contar como foi.

Era o caso da Tamara. Ela não gostava só de falar dos casos dela enquanto jantávamos, tomávamos uma cerveja ou batíamos papo, ela gostava de narrar enquanto transávamos. Tinha um tesão em contar das suas transas malucas enquanto nós estávamos fazendo coisas que para mim eram o melhor em sexo.

Eu, perto da Tamara, era aquilo que chamam um bunda-mole. Um bunda-mole de primeira.

Eu estava ali, dando o meu melhor: puxa daqui, empurra dali, era perna para um lado, braço para o outro, alongamento de yoga, tudo coisa fina. E ela querendo contar como um mané qualquer balançava os dreeds enquanto cantava uma música do Bob Marley. Porra! Cantar Bob Marley enquanto transa, isso lá vai dar tesão em alguém? É foda!

Uma vez ela começou com uns papos:

-Rica, quem sabe a gente trás mais alguém para a nossa cama?

Eu, já calejado, fui mais do que ligeiro:

-Tamara, defina alguém.
-Quem sabe uma das gurias?
- Acho boa, boa ideia, Tami. Não da para ficar preso aos valores burgueses, não é? A possessividade é uma merda.
- Sim, que bom que tu tem a cabeça tão aberta.
- Tami, minha cabeça é como o mar.
-Mar?
-Claro, aberta. Um oceano, tudo flui.
- Rica, por isso que eu sou tão afim de ti. Nós também podíamos chamar o Carlos, das Ciências Sociais.

Pronto, era isso. Sempre tinha a volta. Na teoria o amor livre era lindo, mas na prática sempre tem a merda da volta.

Sofrimentos

A faculdade de filosofia não nos ensina nada sobre o amor. As pessoas sempre acham que lá se aprende dimensões interessantes sobre a vida, a morte, a paixão. Não tem nada a ver. Na faculdade aprendemos Ética, Estética e Moral, ou seja, nada que me preparasse para a Tamara.

Eu me lembro que um primo meu falou que ia casar, mas que o amor não era fácil. Olhou para a minha barbicha de bode e disse:

- O Ricardo sabe, ele estuda filosofia.

Eu fiz aquela cara de quem concorda, mas não sei o que o meu primo acha que eu estudei na faculdade, só sei que viajou.

Voltando a Tamara, eu posso dizer que ela era livre, muito livre, e não sei porque razão adorava me contar das aventuras dela. Contava que transou com mulheres, com mais de um cara, que conhecia o sexo tântrico e coisas que até hoje me doem lembrar.

Eu ficava com um ciúme, com uma raiva, mas não falava nada. Não podia passar por careta.

Uma vez eu quase morri. Nós estávamos passeando na redenção, tomando mate, passeio altamente hippie, na paz, apaixonados e ela me diz:

- Rica, eu estive pensando, acho que nós podemos ficar com outras pessoas, não precisamos desta coisa de compromisso, não é?

Tive uma pequena pane no sistema central, quase deslizei pra trás, depois pra frente, derrubei o chimarrão todo em mim. Respirei fundo e soprei com voz natural, ou quase isso:

- Pois amor (chamava de amor com um mês de namoro, queria casar com ela), eu acho que não, não é, bem light, vamos ficar tranquilos.

- Claro Rica, eu sabia que tu ia entender. Ontem eu vi um cara que entrou no curso de Ciências Sociais, achei interessante, queria ter certeza que tu ficar na boa.

Outra pane, morri de vez e levei a garrafa térmica junto, ela quebrou em vários pedaços.

- Tamara, claro. Ciências Sociais, legal.

Nada podia me preparar para a Tamara, eu continuei com ela um bom tempo e nunca sofri tanto na minha vida. Ela não gostava só de fazer, ela queria se exibir.

Tamara

Depois da Rê veio a Tamara. A principal coisa que eu posso dizer da Tamara é que ela me dava e me dava muito. Na verdade a Tamara me dava tanto que eu nao sabia o que fazer com ela. A gente se conheceu nas Catacumbas, uma festa do pessoal da faculdade.

Como acontecia em todas as festas eu estava parado em um dos cantos. A música era aquela barulheira de sempre, uma gritaria em inglês, um som de guitarra interminável, para quem gosta uma beleza. Eu tinha fumado alguma maconha e já não estava entendendo mais nada que acontecia, até que apareceu uma guria que definifitvamente apreciava a música, porque mexia a cabeça com uma vontade que dobrava o gosto.

Eu fui me aproximando, até porque não tinha outra opção, ela vinha cada vez mais pra cima da parede e eu vivia escorado naquela parece. Quando eu me aproximei para falar com ela, chegar perto do ouvido, ela me deu uma cabeçada na boca.

Rapaz, aquilo foi uma sangueira que não tinha mais fim. Ela virou para brigar comigo, mas quando viu o tanto de sangue que saia da minha boca ficou assustada e eu fiquei apavorado quando vi o susto dela.

De pronto fomos para a rua e mais de pronto ela me agarrou. Eu fiquei numa situação difícil, não queria perder a mulher, mas beijar com o lábio aberto não era convidativo. Mas a Tamara não se fazia de rogada e me convidou para ir no quarto dela. Chegando lá já começou a se empenhar no assunto importante.

Obviamente eu esqueci o meu problema na boca. A Tamara sempre teve o dom de me apagar todos os problemas. Eu fui muito apaixonado por ela, e ser apaixonado não podia render felicidade.

Namoradas

A faculdade de filosofia tem quatro anos de duração, mas como filosofia é uma coisa difícil o pessoal costuma ficar de 6 a 8 anos, alguns exagerados chegam a 10. Eu, que sou um cara que faço as coisas na maciota, levei 7 anos.

A verdade é que a filosofia leva tempo até entrar na gente e a galera costuma levar mais tempo ainda até querer entrar na vida burguesa do trabalho pesado.

Nesses sete anos eu tive algumas namoradas e muitas foram experiências antropológicas. Primeiro foi a Rê, apelido de Regência não de Regina. A Rê era a careta: a família dela era de Coronel Bicaco, o pai dela era prefeito da cidade. Ela levava a filosofia a sério, já tinha lido uma porção de livros antes de entrar na faculdade. Gostava dos filósofos padres, o São Tomé, o Santo Agostinho, uma porção de gente que eu nunca ia ler na vida, nem atado.

Mas a principal característica da Rê é que ela não me dava. Não tinha jeito, não tinha Cristo que fizesse ela me dar e olha que aquela mulher gostava de Cristo, pena que de dar não gostava.

O namoro não durou muito, 3 meses, acabou num papo cabeça, como eram quase todos os nossos papos. Eu tentando comê-la e ela tetando me ensinar a filosofia do Santo.

- Pô Rê, isso não é pecado, era pecado na época do Tomas, hoje já foi liberado

- Que Tomas, Ricardo?.

- O Santo que tu gosta.

- São Tomas Ricardo, São Tomas!!

- Pois é Rê, hoje a coisa já mudou. É tudo parte da tal natureza, o yin-yang, paz e amor, essa coisa que a galera diz. Os valores mudaram, a moral crista é uma mentira, é como diz o Nietzcshe: Deus está morto e vamos que vamos, algo assim.

- Não é assim, Ricardo. Já te expliquei. O Nietzsche pode ser contra-argumentado segunda a posição agostiniana vista nas Confissões e mais especialmente quando revisto pelo prisma do idealismo alemão. A ideia kantiana de....

- Pô Rê, da pra mim!

- Ricardo, isso acaba aqui.

Não cheguei a ficar muito triste, senti falta daquele arreto com roupa que parecia aquelas coisas de primo, que a gente sabe que não vai dar em nada mas faz para ir ganhando prática.

terça-feira, 16 de março de 2010

Bissexualidade

Quando eu falo desta coisa de ser hippie espero que os amigos entendam que não tentei ser hippie nos anos 70 ou 80. É coisa de agora, hippie ano 2000. Coisa moderna que chegou tarde, já tinha começado errado.

Como todo grupo os hippies da faculdade tinham várias regras, nenhuma expressa, mas todas punidas com o ridículo. O engraçado é que maioria já sabia qual eram as regras para não dar gafe, eu aprendi ao longo do tempo e geralmente só percebia a regra quando já tinha furado com ela.

Para tentar não errar tanto eu sempre conversava com o pessoal mais próximo, pedia umas dicas, na honestidade. Com os menos conhecidos eu tinha que dar uma volta para não ser desmascarado, com os íntimos eu era direto.

Foi o caso daquela história de ser bissexual, bem liberal, que eu não sabia muito bem como funcionava. Pra descobrir não tinha como dar muito contorno, o tema é delicado, envolve questões sérias e até arriscadas (se o companheiro me entende), precisava falar com um especialista. Aí que fui ter aquele papo com o Gabi.

O cara era um perito. Ele comia muita gente, inclusive caras que eu nunca imaginava que iriam dar para alguém. Ele achava que todos os caras da faculdade queriam dar para ele, eu também achava que todas as mulheres queriam dar pra mim, a diferença é que o Gabi era efetivo.

- Gabi, pois então, como é essa história?

- Que história, Rica?

- Essa aí, tu sabe, essa confusão de homem com homem, mulher com mulher.

- Que confusão que tem? Homem come homem, mulher come mulher.

- Não entendi.

- Que parte?

- Eu não sei, acho que sou meio travado. Devo ter uma repressão da infância, trauma, recalque, talvez devesse fazer uma terapia.

-Por quê?

- Eu não quero comer nenhum dos nossos amigos.

- Nenhum?

- Pois tchê, nenhum!

O Gabi ficou pensativo. Aquilo parecia ser uma novidade pra ele.

- Mas Rica, tu sabes que transar com homem é muito melhor que transar com mulher, não?

-Não sabia.

- Claro. Homem não tem frescura. É direto ao assunto. Chegou, tirou a roupa e transou. É um piscar de olhos e já está todo mundo pronto. Não tem que fazer preliminar, ligar depois, é uma coisa mais independente.

- Assim rápido?

-Tu nem imagina.

- Então rapaz, isso que te digo. Essa facilidade toda e eu aqui sem tesão nenhum. Por exemplo, estou te olhando e não me da tesão nenhum.

- Não precisa ofender, Ricardo. Escuta, tu reparou na bunda daquele cara que passou aqui?

- Que cara, não vi cara nenhum.

- Rica, tu quer é romper barreira social. Tesão não dá escolha. Vai comer umas vacas lá em Viamão.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O objetivo

Eu sai correndo de sunga em direção à praia. Minha missão não era nada fácil, estava escuro e eu não tinha levado lanterna. Agucei o ouvido, talvez escutasse ao longe gemidos, risadas, um êxtase, os sons da orgia, ao menos o mar. Nada.
Peguei a trilha de areia, aquela inconfundível que sempre leva à praia. Eu alternava corridas, caminhadas e pequenos saltos de emoção, imaginava a chegada no local. Ia ser algo como um bufê livre. Poderia escolher a mulher que eu quisesse e logo em seguida outra. E elas também estariam ali escolhendo. Quem sabe não me escolhiam duas juntas, ou três? Quem sabe o pessoal está motivado?
Cheguei a praia, não havia ninguém. Não ia me desiludir: "Calma, tenho que manter a calma. O pessoal pode estar em qualquer lugar, a praia é grande e eu já estou de sunga. Vou dar uma caminhada."

Me orgulho de contar aos amigos que encontrei a orgia. Estavam entre as dunas. Era um número razoável de pessoas, talvez umas 13. Não posso dizer ao certo quantos homens e quantas mulheres, porque em geral eram pessoas com muito cabelo. Mas parecia bem dividido.
Eu fui me achegando devagar. Sempre esperei por isso, eu sei, mas eu estava meio tímido. Afinal, era um monte de gente pelada.
Não sabia se tirava a sunga logo de cara, se chegava perto de um casal transando... Nunca tinha pensando nos detalhes práticos desta coisa.
Tirei a sunga, na dúvida não enrolei no braço, segurei na mão. Cheguei perto de uma mulher e ela foi receptiva, bem receptiva. Já foi me segurando, me puxando. Eu comecei a transar com ela. O mundo era bom!
Foi então que aconteceu uma coisa estranha, uma outra mulher veio, com um cara junto. Eles começaram a transar do nosso lado, com a gente. Para todo lado que eu olhava tinha alguém transando. As pessoas chegavam sem pedir.
Me senti desconfortável. Não era uma coisa bonita de se olhar, era estranho. Eu fui me sentindo cada vez pior, até que decidi ir embora. Ninguém notou. Por sorte a sunga ainda estava na mão.

Quando voltei pra barraca o Gabi já estava lá, dando risada.

- Foi procurar a galera, Rica?
- É.
- Eai, foi boa a coisa?
- Mais ou menos. E tu, comeu alguém?
- Não, só dei uns beijos no Walter.
- No Walter, como assim, no Walter?
- Tchê, como assim o que? Beijei o Walter. Não transei com o cara, é muito guri.
- Ah tá. Foi bom?
- Mais ou menos, também.
- Pena. Sem sorte esta noite. Boa noite, Gabi.
- Boa noite.

O Gabi era gay, foi minha brilhante conclusão. Eu ia dormir com um gay na barraca e o maior sonho da minha vida tinha sido frustrado, provavelmente eu não dormiria direito.

O Gabi acabou virando um dos maiores amigos que tive na faculdade.

O festival

Eu tenho um problema específico com música, eu não gosto muito dela. Eu sei que não é politicamente correto, eu pareço insensível, mas é assim.
Naquele acampamento eu arranhava o disco rígido: " Que diabos estou fazendo num festival de música?".
Para piorar, odeio música com sons intermináveis de guitarra. O cara segura aquela guitarra e toca uma nota, aí aquela nota fica, fica e fica. Enquanto a tal nota está lá, dançando, o guitarrista se enrosca todo, igual uma minhoca, coloca a cabeleira pra baixo e pra trás. É uma beleza.
O pessoal adorava. Parecia que cada nota entrava no corpo da turma, ou eles sentiam a música ou eram muito bons em imitação de minhocas.
A sensação que mais me ocorria naquela pista (que naquela altura era um barro só, e eu de alpargatas), era a mesma que sinto quando vou ao cinema e alguém chora e eu não: "Tem alguma coisa que eu não entendi".

Em dois dias eu não tinha comido ninguém naquele festival, no máximo uns beijos muito loucos me esforçando para agarrar a mulher e fazer minha melhor imitação de minhoca.
Orgia eu não tinha nem ouvido falar e as gurias que corriam peladas já eram um mito que só eu não tinha visto.

Até que chegou a noite do terceiro dia. Eu já tinha ido dormir, sempre dormia cedo, e o Gabi entrou na barraca para pegar umas coisas. (Aquela altura eu já tinha visto que a melhor coisa que fiz foi escolher dormir com o Gabi, o cara organizava a barraca).

- Rica, desculpa cara, deixa eu pegar umas coisa aqui
(O cara pedia desculpa, entendia que eu dormia cedo, um privilégio)
- Claro Gabi, eu ajudo, o que tu quer?
- Uma camisinha.
(Porra, o Gabi vai comer alguém, não acredito! Nunca vi o cara dar em cima de ninguém, ficava sempre mais de canto, conversando com um ou outro)
- Vai comer alguém, Gabi?
- É, vamos ver.
- Espera um pouco, eu te alcanço uma, tenho umas quantas aqui, pelo jeito não vou usar.
- Valeu. Tu não vai usar só se não quiser. Acabou o show agora, tem uma galera muito louca que correu para o mar pelada.

Era óbvio que eu não tinha muito tempo a perder, a barraca ficava longe do mar. Tentei achar uma bermuda o mais rápido possível. Pensei melhor, não tinha porque achar bermuda, estava todo mundo pelado mesmo, eu ia entrar no clima. Mas vamos que eu não encontro a tal gente pelada, aí fico eu sem roupa correndo por aí.
Achei uma bermuda, só que era das boas. Provavelmente numa orgia o cara perde a bermuda, eu não vou ficar segurando ela, atrapalharia minhas manobras. Muito menos guardar num canto da praia.
Achei uma sunga, perfeito, na hora H até amarro em volta do braço.
Fui!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Chegando

Para ir até Santa Catarina, nós, os 15 da turma, tínhamos dois carros. O pessoal pensou em uma engenharia para colocar 7 em cada um. Ficaram tristes porque ficava faltando um lugar. Eu logo me prontifiquei para ir de ônibus.

A galera chegou antes, eu fui depois e me pegaram na Rodoviária.

- Rica, tu vai curtir o lugar. É tudo liberado.
- Mulherada?
- Não tem repressão, cara. A gente fuma tranquilo o dia todo.
- Legal, e a mulherada?
- Ontem tocou uma banda só de mulheres, coisa boa.
- Ah. (Nada bom)
- E também rolou aquela roda do fogo. Umas gurias que se pelaram e correram com fogo.
- Caralho, mulherada!

O lugar era tudo que eu tinha imaginado. Muita lama, muitas barracas e muita gente cheia de cabelo. Naquela altura eu também já tinha um cabelo de fundamento e até uma barbicha. Era quase um hippie, quase.

- Rica, cadê tua barraca?
(Eu tinha ido para um acampamento e eu não tinha levado barraca)
- Pois tchê... tchê, pois é, não trouxe.
- Como não trouxe?

É agora, conto a verdade: eu nunca acampei. Não, melhor apelar para uma explicação mais genérica:

- Cara...... Achei que ia ser tranquilo, natural.
- Legal, mas olha, nós aqui estamos meio apertados, tem lugar com o Barba ou com o Gabi.

O Barba era um legítimo hippie. O apelido não deixava nada a desejar pela aparência. Cabelo e barba formavam um só volume, era ele quem sempre conseguia o baseado pra galera e o fumo de corda enrolado em palha de milho vinham deste cara.

O Gabi eu não conhecia bem. Era colega de faculdade, parecia altamente civilizado, desses de tomar banho todo dia, cabelo cortado, não em casa, mas com gente que corta cabelo. O cara não tinha a essência hippie, não tinha a liberdade, a pureza, os trejeitos. Eu ia ficar na barraca dele, claro.

- Onde é a barraca do Gabi?

O Convite

Não há quem tenha sido hippie, ou tentado ser um, que não tenha sonhado com uma orgia. Na verdade ser hippie é uma tentativa de realizar este sonho, ao menos o meu era.
Sempre imaginei eu no meio de um mar de mulheres, todas numa boa, afim de transar comigo e entre elas.

Nas festas da faculdade nunca rolava isso e com o tempo eu fui perdendo minhas esperanças. Sempre que tinha uma festa eu enturmava no máximo em uma gata. Como a gurizada era muito encarnada no tal do baseado (e eu não me dei muito bem com ele) sempre dava os primeiros passos. Nunca cheguei perto da orgia, comi gente aqui, outra ali, mas nada fora do comum.

O meu sonho era o tal do Woodstock. Dizem que foi uma beleza. Era um monte de gente, um monte de droga e uma música daquelas que a guitarra fica horas fazendo barulho. Eu só imagino, devia ser uma beleza mesmo.
Ouvi falar que o melhor era a sensação de liberdade, sem repressão: "estamos livres do sistema"; sempre achei que significava uma trepação bárbara.

Um dia me convidaram para fazer uma viagem. Tinha um festival em Santa Catarina.
- Vamos Rica, vai todo mundo, tem uns 15 da turma que vão.
- Mas tu disse que só tem três barracas?
- Cara, a gente dá um jeito, no amor.
- Sei não, sei não.
- O som é de uma galera massa. Tudo cover de primeira, Janes Joplin, Doors, Pink.
(Eu nunca gostei dos originais)
- Tchê, sei não, sei não.
- Também diz que a mulherda corre solta.
- Tipo Woodsotck?
- Exato. Grande Rica, tipo Woodstock.
- Bora lá, então.

Tínhamos orgia à vista.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Ida ao Campus

Para ir até o Campus do Vale era um barbada, pegava o ônibus ali do lado da casa da mãe. Demorava bastante até chegar, então tinha que sair logo depois do almoço, nada fácil! O pior era dia de chuva, a alpargata molhada é de doer.
Sempre tinha um magro conhecido na parada e geralmente rolava um papo bom.
- Eai Rica, firme?
- Que nem anta gorda.
- Boa essa.
- Velha escola.
- Certo, velha escola.
Na hora que a gente pegava ônibus sempre ia junto o pessoal da PUC, os burgueses, bundinhas, filhinhos de papai da PUC. As mulheres da PUC eram muito mais gostosas que as nossas.
- Cara, olha aquela loira, que monumento, da PUC, claro.
- Sei não Rica, não gosto do estilo.
- Sei, tu gosta daquele outro estilo, o estilo feia.- Era óbvio que o cara tava brincando.
- Não, sério meu, eu gosto de mais natural, esta é muito montada.
- Verdade, não tinha reparado. Dava até pra desmontar e remontar lá em casa, ia ficar uma beleza no meu quarto.
- Pô Rica, te liga.
- Tu ta certo meu, olha que coisa ridícula. (A mulher ia subindo no ônibus e eu não tirava o olho dela, era boa demais). A bunda dela está montada muito pra cima, ridículo.
- Cara, que bus que não chega, hein? Tu reparou que já passou dois da PUC. Vou acender um cigarro.
- Aha, aí vem o ônibus meu.
- Bah, não acredito, só porque acendi o cigarro.
- Claro, aposto que não fazem isso com a galera da PUC.
- Cara, vai me desculpar mas hoje não vou desperdiçar. Deixa apagar ele aqui, vou devolver pra carteira.
E lá fomos pro Campus, atrasado e com um cheiro a cigarro apagado insuportável. Eu era um hippie, não havia dúvida, só não sabia se estava gostando.