terça-feira, 22 de novembro de 2011

Cafuné

Quando eu visitava a família em Lavras me distanciava um pouco da hippongagem da faculdade. Era bom, porque aí podia ficara mais livre: usar calça jeans e camisetas novas - às vezes até uma camisa pólo.

Mesmo de barbão e cabelo comprido os primos sempre me convidavam para sair à noite. Era estranho, porque no interior o pessoal não está acostumado a ver homem com cabelo mais comprido que mulher; ainda mais com dreads. Mas aquilo atraia a atenção, e os primos gostavam de me apresentar como o cara da cidade.

Esse circo só rendia frutos para eles: enquanto eles falavam de mim com as gurias, eu ficava como um bicho raro de zoológico numa mesa no canto da festa. Via eles de longe, jogando papo e me apontando. Às vezes me abanavam bem faceiros - eu erguia o copo e mandava um alô. Um que outro acabava vindo até mim, trazendo a vítima da vez:

- Esse é o Ricardo, meu primo. Ele é da cidade. Ricardo, ela quer tocar no teu cabelo, não acredita que é de verdade.

- Posso? Tu não te importas?

A verdade é que eu não me importava: na seca que eu vivia em Lavras, um carinhosinho de mulher vinha bem. Claro, sentia algum receio pelos piolhos. Sabem como é dread: batia aquela tensão, imaginando que um dos bichanos ia saltar na mão da guria, e ela ia sair correndo gritando. Aí sim, estaria acabada qualquer possibilidade de comer alguém na cidade.

Meus primos davam o maior incentivo:

- O Ricardo não se importa. Ele é tranquilo. Até apelidaram ele de Rica lá onde ele estuda. Não é? - Não sei por que eles consideravam Rica uma desfeita. - Pode meter a mão! Vira aqui, primo. Vamos mexe, mexe, não precisa ter medo.

Elas adoravam: primeiro pegavam um dread - tímidas; depois iniciavam uma inspeção minuciosa: tascavam a mão em dois dreads e balançavam de um lado para o outro; apalpavam toda minha cabeça; tentavam segurar todo o cabelo com as duas mãos; por fim, davam uns tapinhas no meu cocuruto, perguntando: "Tu sentes aqui em cima? Sente? Bem aqui, oh. Sente?".

Era chato, mas valia o cafuné. Além do que, os primos ficavam muito gratos e pagavam toda a minha cerveja.

Eu só ficava indignado - e corria todo mundo da mesa - quando elas decidiam tecer comentários do tipo: "Mas como é estranho isso aqui!"; "Isso fica todo ressecado! Que horror!"; ou "Aí, que cheiro engraçado que tem isso!!". Aí eu não aguentava: humilhação tem limite; até pra um hippie.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Alpargatas e meias de lã


Tem uma coisa que a gente aprende rápido quando decide ser hippie: tem que se vestir mal. Nada de sair com qualquer roupa na rua. Dá muito trabalho andar por aí mal vestido.

Mas não tardei para aprender a arte. Tudo era uma questão de pegar as roupas mais coloridas do armário e colocar todas juntas, uma por cima da outra. Minhas peças preferidas eram uma calça de moletom azul; uma camiseta com um desenho abstrato em verde, vermelho, amarelo e laranja sobre um fundo marrom; um casaco do exército alemão e alpargatas. Tudo isso formava uma combinação ímpar, que me conferia muito respeito entre os colegas.
Algumas vezes tentei arriscar peças mais discretas; usei tons de cinza - não deu ibope.

O importante era passar a imagem de desinteresse; tinha que aparentar que a roupa escolhida era a primeira que pulara do armário na minha mão. Quem se apresentasse com ares de que escolheu o traje, que combinou calça com camiseta, era tido como pessoa menor: um ser que precisava cuidar da aparência porque não tinha conteúdo.

No início a mãe andava preocupada. Era eu despontar na sala que ela vinha de arrasto. Queria saber se eu tinha visto o furo atrás da minha camiseta; se eu sabia que camiseta marrom não combinava com a calça azul turquesa; e, principalmente, se eu tinha consciência que nada combinaria com uma calça azul turquesa.
                             
Demorou, mas com o passar dos anos foi acostumando. Quando eu aparecia, ela levantava os olhos, erguia uma sobrancelha e voltava pros seus afazeres. Manteve o autocontrole por anos. Até que um dia não pôde mais. Eu estava de saída, ela sentada lendo jornal. Vi que olhou sobre as folhas; conferiu a calça e a camiseta. Pareceu consentir. Quando cheguei à porta ela olhou por baixo do jornal.

- Meu filho, só um minutinho. Isso são alpargatas?

- Sempre.

- E me diz uma coisa, isso são meias de lã?

Levantei os pés e olhei as meias. Fingindo inocência respondi:

- Pior que são.

- Tu estás de alpargatas e meias de lã?

- Isso.

Ela fraquejou: inspirou fundo e soltou o ar num longo suspiro:

- Aaaaiii meu filho. 


Percebi a oportunidade de defender meu ponto de vista. Discorri sobre a incongruência do ser e do aparecer. Questionei se ela não via que a roupa não significava nada. O que estava por cima tanto fazia, o importante era o que vinha de dentro. Era aí que deveria acontecer a verdadeira escolha. Terminei o discurso dizendo que sempre pegaria a primeira roupa que visse dentro do armário, porém escolheria com amor minha decisões éticas.   
Ela pareceu intrigada; levantou as duas sobrancelhas e deu um sorriso. Supus que estava espantada com minha genialidade. 


Na saída escutei:


- Muito bem, até a volta. Boa aula.


Quando voltei da faculdade entendi tudo. Todas as minhas roupas antigas estavam na lavanderia, no meu guarda-roupas só tinham camisas pólo e calças jeans. Pensei em reclamar, mas sabia que seria minha completa desmoralização. 

A velha não se entregava fácil; mas eu também não ia afrouxar. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Astrologia

Na faculdade aprendi que para ser entendido num assunto o fundamental é decorar algumas palavras e falar com convicção. Sempre usei essa estratégia - das discussões metafísicas aos debates políticos.

Quando o tema era o destino do Brasil, eu criticava o sistema e a burguesia: citava alguma frase do Marx e xingava a ganância e a tecnologia. Aprimorei a técnica quando aprendi que com alguns bons prefixos (como "neo" e "pseudo") ganhava alguma relevância nos debates.

Formei verdadeiras pérolas:

- A questão é a neo burguesia brasileira, impregnada deste pseudo sistema capitalista. Claro, tudo fruto das novas tecnologias, que aumentam a ganância sem nutrir o que é fundamental para o ser. - Às vezes juntava espiritualidade com política; aí não tinha pra ninguém.

Quando o pessoal enveredava para as querelas metafísicas, era apropriado utilizar palavras como ser, essência e transcendência. Por um tempo tentei usar ontologia, mas nunca entendi bem o significado, e percebi que sempre que arriscava o pessoal olhava com cara de desconfiado. Achei prudente ficar no meu metiê.

- Temos que admitir que a essência do ser é transcendente. O ente tem o seu devir verdadeiro, não essa pseudo realidade. - Aqui também podia atochar uns prefixos, mas era mais delicado.

Foi esta técnica que me deu confiança quando conheci a Mirna. Ela era astróloga. Vivia falando dos signos e dos planetas. Eu não entendia nada, mas era uma beleza vê-la apontando para o céu enquanto palestrava.


Para não parecer burro eu arriscava opiniões. O problema é que a única coisa que sabia sobre signos é que todos têm nomes de bichos. Tentava atacar com o papo metafísico, mesclando com algumas palavras básicas do horóscopo do jornal.

- Acho que os signos são coisas em si, que transcendem nosso mundo. Fico intrigado com conjunção de certos planetas e o movimento das casas. Pois, aí, as essências torna-se desordenadas. Não te parece?

- Conjunção de quais planetas?

Ela estava sempre me testando. Minha sorte era ter a técnica da convicção desenvolvida, o que me ajudava a não perder o prumo.  

- Mirna, Marte com Netuno. Só para citar um exemplo simples. - Cada frase era um tiro no escuro que carregava toda a minha credibilidade.

- Nunca ouvi falar desta conjunção!

- É rara. Uma hora te mostro.

Com o tempo fui ficando apegado à astrologia e passei a me achar um pouco conhecedor. Lia o horóscopo todos os dias, descobri - na internet - meu ascendente e minha lua. Não demorei muito para conquistar a Mirna.

Minha máscara ruiu quando ela foi para o XXX Congresso Internacional de Astrologia, no Peru. Por alguma razão voltou de lá certa da minha fraude, e não ouve convicção que provasse o contrário - tomei o tombo ainda no aeroporto. Enquanto discursava, não percebi que ela fazia cara de desconfiada. Eu falava que pela conjunção de Marte com a Terra, agregando a fase da Lua, minha libido estava alcançando um estágio elevado. Eu havia visto que a distância entre os planetas estavam em níveis críticos e que, se ela não sabia, aquilo causava um distúrbio nas quantidades hormonais de cada um. Ela não esperou eu terminar; atacou sem dó:

- Ricardo, não existe conjunção de Marte com Netuno; os planetas não estão próximos; o teu ascendente não é touro e tua lua não está em gêmeos. Tu és uma farsa. 

Saiu em disparada, arrastando a mala de rodinhas. Ainda atirei uma explicação: tudo isso que tinha dito era em sentido metafísico, como uma pseudo-neo-astrologia. Ela já estava dentro táxi e mostrava o dedo médio pela janela.         

sábado, 23 de julho de 2011

À procura do mestre (continuação)

Com algum tempo de hippongagem, a gente aprende que esse pessoal dedicado à meditação e às práticas exotéricas pode ser um tanto extremista.

Quando encontrei o cara do vestidão - no dia seguinte -, perguntei se ele topava um café, ele negou. Quem sabe um pastel? Não comia farinha branca. Torta? Açúcar é veneno. Um suco? As frutas são congeladas. Água?

- Da Charrua nem pensar. Sou contra a Coca-Cola.

- Se pegamos da torneira?

Topou.

Logo que sentamos, percebi que o homem estava preparado. Tirou dois livrões da mochila, ambos com a mesma foto na capa: um cara barbudo, cabeludo e com um sorrisão. Gostei do sujeito.

- Rica, se tu queres entrar para os ensinamentos do mestre Karaschinanabanda, tu deves começar a fazer as práticas. Podes iniciar hoje. Fazemos aquele yoga diário, que tu viste ontem.

Calma lá, pensei. Eu tô querendo entrar para o clube, entender o ser e desprender dos bens materiais, mas fazer acrobacias no meio do campus, de sunga, com a galera vendo, não está nos meus planos. Comecei a dar desculpas variadas. Aleguei dores no joelho, nas costas, fraqueza nos braços. Ele respondeu que a prática resolveria tudo: o movimento era pensado para isto. Já estava quase sem saída quando veio a luz:

- Cara, não vai dar: esqueci minha sunga.

Passamos à teoria.

O grande mestre não era somente sábio. Pelo que entendi, era também um cara que sacava tudo de linguística. Dizia que devemos entrar em contato com o eu que é nós, que é tu, ele e todos. O eu que não é algo, porque é. Este nós, que é tu, ele e eu, é o ser. Não é um sujeito, mas verbo.

A coisa foi ficando enrolada. Percebi que não deveria ter matado aquelas aulas de português para entender os ensinamentos. O discurso não tinha fim: passou do eu para o todo e do todo para o nada. No final o meu eu já estava todo no nada: dormi.

- Tu estás dormindo?

Acordei num salto.

- Não estava dormindo, estava meditando...

- Tua cabeça caiu!

- Digamos que ressonei.

- Entendo. Os ensinamentos do grande Karaschinanabanda são profundos, a mente deseja fugir, porque tem medo que eles a destruam. Tu deves lutar contra isso.

Mais dez minutos de papo e comecei a desconfiar que minha mente era a maior cagona do mundo: o sono ficou irresistível. Eu piscava sem parar. Olhava do relógio para o amigo, do amigo para mesa. Já não entendia mais nada do que ele dizia, só ouvia aquela voz de fundo que parecia canção de ninar. Até que ele pegou na minha mão:

- Então? Tu topas?

- Como? - Momento tenso, não sabia o que ele tinha falado.

- Posso contar contigo na jornada?

Fiquei em dúvida: qual seria a resposta? Arrisquei, sem convicção:

- Sim?

- Beleza, ficamos acertados. Amanhã te espero no intervalo. Não esquece a tua sunga.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

À procura do mestre

Por mais que eu não tenha me adaptado ao retiro espiritual, saí de lá com vontade de ter um guru. Para um hippie, ter um mestre, é como para um economista ser pós-doutor – em Harvard.

Como eu nunca tinha lido a galera do Oriente, decidi falar com o cara do vestidão, que tinha um papo complicado, mas com toda cara de coisa importada.

Num intervalo de aula, fui procurar o homem. Ele estava - como de costume - no meio do pátio com mais cinco amigos, todos de sunga, fazendo uma posição de yoga que parecia mistura de auto-kamasutra com quero-suruba-já. Fiquei receoso. Poderia atrapalhar a comunicação deles com o todo; interromper o fluxo de respiração essencial para a ligação cósmica; ou pior, poderiam me convidar para participar da farra.

Quando o tempo do lanche estava no fim, tomei coragem. Cheguei devagar: calculando no passo e medindo na respiração. Eles haviam mudado a posição, agora parecia mais não-me-empurra-que-caio misturado com olha-que-te-ataco.

— Licença. Não querendo interromper, mas tô atrás de algumas informações sobre o grande... o grande, — como era mesmo o nome do guru? — aquele indiano bacana, do amor da consciência e todas aquelas coisas importantes. O Karacharchara?

Desconfiei que tinha errado o nome, porque um cara que estava lá atrás caiu um tombo, me olhou com cara feia e disparou:

— O grande Karaschinanabanda?

Fiquei constrangido. Decidi mostrar que eu não era um completo ignorante nas questões metafísicas. Já tinha estudado um pouco das coisas espirituais: tinha feito catequese, e na igreja de Lavras - pessoal ortodoxo. Lá a rapaziada também falava de amor. Eu sabia bem que Jesus Cristo tinha falado que a paz devia reinar entre os homens e...

No meio do papo vi que dois magros perderam a concentração e caíram, os dois ao mesmo tempo. Eu devia estar impressionando. Decidi não deixar nenhum de pé:

— Vocês talvez conheçam aquela passagem que Jesus manda ninguém atirar pedra na Madalena, que era sem vergonha, claro, mas também era gente. Ali ele mostra que a galera tem que se amar. — Puft. Derrubei mais um com essa, eu estava inspirado, só faltava o do vestidão. — E não podemos esquecer aquela outra passagem, a do vinho, que o cabeludo regou a festa a trago. O que é isso? Amor, amor verdadeiro ao próximo!

O sujeito seguia concentradíssimo.

Não queria entregar meus pontos. Como o conhecimento bíblico tinha chegado ao fim, arrisquei:

— Tem aquela frase, também, que resume tudo: “Mesmo que eu falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria”. Isso aí é da Bíblia. E diz tudo!

Bingo! O cara não resistiu: desequilibrou e foi pro chão. Fiquei olhando pra ele com cara de entendido. Combinamos uma conversa sobre o guru para o dia seguinte.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Retiro II

O bom hippie tem que ser desapegado dos bens materiais, isso é óbvio. O que ninguém imagina é que sai muito caro este tal desprendimento.

No primeiro dia de retiro, o mestre Gerson questionou quais eram os motivos que haviam levado cada um de nós até lá. As respostas foram bonitas e variadas. Um havia vindo em busca da iluminação transcendental do ser: queria ampliar a percepção até transpor as ínfimas barreiras do tempo e do espaço deixando para trás a mesquinhez deste mundo. O outro desejava conectar-se com o mais profundo, esquecendo e ultrapassando o que nos rodeia. Meu amigo de faculdade ansiava libertar a mente do desejo e superar a barreira que existia entre sujeito e objeto.

Quando fui convocado a falar, achei que ia ficar ridículo dizer que eu estava ali porque não agüentava mais a mãe no meu ouvido dizendo que era para resolver logo a questão do aumento da pensão. Fui genérico:

— Estou preocupado com questões básicas da subsistência humana.

Colou.

Depois que falei, o mestre citou algumas passagens do guru Karaschinanabanda, entoou mantras e disse que ficaríamos ali por dois dias e meio, faríamos todas as refeições no local e deveríamos evitar qualquer saída. Completou assinalando que, o pacote inteiro, incluindo meditação, aula de yoga e palestra sairia por quinhentos reais. Poderíamos pagar em cheque, dinheiro ou cartão de crédito. Eles haviam conseguido uma máquina de cartão. Refeições não estavam incluídas.

Percebi que era o único apegado aos bens materiais quando todos pagaram em dinheiro, à vista. Só eu dei cheque, dois pré-datados

O retiro foi difícil de agüentar. Não pelas aulas de yoga, que eram bem bacanas. Dureza era a meditação. Manter o foco numa parede branca por duas horas era impossível e tornou-se insustentável depois da primeira refeição: foram servidos dois pasteizinhos assados e um suco verde — cobraram quinze reais e cinquenta centavos. Acabei gastando todo o meu tempo  dedicado à limpeza da mente tentando imaginar quais calamidades teriam acontecido no Brasil para que dois pasteizinhos de espinafre com um copo de suco inflacionassem tanto em menos de um dia de retiro.

Nas palestras, o mestre Gerson falava muito da necessidade de enxergar este mundo como uma ilusão fabricada pela nossa mente. Para ele, nosso cérebro interpretava os acontecimentos como reais, mas eles eram passageiros e falsos. Ele discursava e eu só pensava no meu dinheiro: preferia ser um iludido com quinhentos reais que um desiludido pobretão.

Não suportei mais no dia seguinte, quando serviram um pãozinho com manteiga e um chá no café da manhã: dez reais tudo. Levantei e fui até a porta; o mestre tentou me segurar, queria me convencer a persistir.

— Mestre Gerson, mais um dia aqui e peço meu dinheiro de volta.

Ele me soltou e sugeriu que eu fosse em paz.

Retiro

Todo hippie (para poder ser chamado assim sem constrangimentos) tem que ter ido a, no mínimo, dois festivais de música no meio do mato e a um retiro espiritual. É fundamental que, se durante um dos festivais chover todos os dias, isso não atrapalhe em nada a vibe da galera. Pelo contrário, deve proporcionar um contato ainda mais intenso da mão com a terra. 

Como naquela altura da faculdade eu já contabilizava um festival, decidi comparecer a um retiro acompanhado da turma dedicada à meditação, ao yoga e à leitura dos ensinamentos de um guru indiano com nome complicado.

Quem me convidou foi um colega que andava sempre de sandálias e vestidão. Nós nunca tínhamos conversado, mas eu estava sempre de olho nele. Era impossível não olhar para um cidadão fazendo yoga, no meio do campus, de vestido, no inverno, e de sunga no verão.

Num dia em que eu estava imaginando o que dizer pro pai para tentar convencê-lo a dar o aumento de pensão que a mãe exigia, o cara veio puxar assunto:

— Bom dia, amigo. Vejo pela sua expressão que você está preocupado com alguma coisa da existência do ser. Percebo que algo fundamental povoa os seus pensamentos.

— Meu chapa, eu estou preocupado com algo mais importante do que a existência, estou preocupado com a subsistência do meu ser. Se é que você me entende. — Para deixar claro que minha questão era dinheiro, fiz minha melhor cara de pobre preocupado.

Não pude ter certeza de que ele tivesse entendido bem. Descarrilhou a dizer que compreendia minha preocupação com a essência que nos nutre. Afinal, isso também era o supremo amor de que falava o grande Karaschinanabanda. Perguntou se eu já tinha lido o grande Karaschinanabanda e ficou surpreso com minha ignorância no assunto:

— Então, você ainda não conhece o maior dos mestres? Não entende esta grande conexão que há entre todos nós? Pois eu convido você a participar do retiro espiritual internacional pela conscientização e iluminação de todos os povos do mundo, que será dirigido por outro grande guru.

Parecia importante. Imaginei que seria no Peru, no Chile ou quem sabe até na Índia — naqueles templos antigos — e eu não teria grana para tanto. Expliquei para o amigo que provavelmente não poderia ir até lá.

— Mas vai ser em Canoas, na casa do Marquinho, com o Mestre Gerson. A gente pode ir de carro.

Topei. Ao menos só me faltaria um festival. 

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Broxar

Era uma questão de honra: eu tinha que broxar! Foi a única vez na história da humanidade que uma broxada seria prova contundente de macheza. Concentrei, mantive o foco - até lembrei da minha mãe -nada. A samba canção traia qualquer tentativa de engano. Se fosse uma sunga poderia colocar o instrumento pro lado, ficaria menos evidente, mas a samba canção formava uma barraca. Fazia a coisa parecer maior do que era.

Os dois amigos da Martinha estavam sem camisa. Davam tapas na bunda dela; ela corria e dava risada. Era uma cena horrível, e eu de pau duro. Nada de falhar.

Aquilo era uma prova da minha teoria que o pênis tem vida própria. Tantas vezes a gente quer, e ele nada; quando a gente nada, ele quer.

Acabei desistindo. Levantei e fui pro outro quarto. Deixei o pessoal se divertir à vontade. Fiquei deitado na cama, sozinho. Eu e a samba canção que seguia lá em cima. Já estava quase dormindo quando a Martinha entra só de calcinha. Veio empurrada pelos gays. Subiu em cima de mim, os seios à mostra, fez um coque no cabelo e chegou perto do meu ouvido:

- Rica, eu gosto de mulher e tu vai ter que ser muito bom pra superar uma mulher. Agora que eu quero ver!

Broxei na hora - comprovei a teoria.

No motel

Ir de táxi para um motel pode ser estranho. Mas é pior quando se chega com um amigo, duas gurias e dois gays - todo mundo junto. Quando paramos na recepção a moça colocou a cara para fora da janelinha, olhou para dentro do carro, e fez a pergunta que estava na minha cabeça o trajeto todo:

- Quantos quartos?

Olhei pro Carlo:

- No mínimo dois, por decência.

- É por minha conta. Pede três.

Ao menos isso.

Ficamos naqueles quartos conjugados, divididos por portas. O Carlo foi rápido: pegou a Josi e desapareceu. Fiquei numa situação tensa: a Martinha não queria saber de sair de perto dos amigos. Eles estavam num enrosco tão sério que achei que ia perder minha chance. Pra não correr esse risco fui me achegando, mantendo o foco nela. Mesclei um ar de boa-praça com um ar de quem não está querendo dar de jeito nenhum. Funcionou. Levei a mulher pro outro quarto, e sozinha.

Começamos a função. A coisa não estava fácil. Eu conquistava posições com dificuldades: se ela cedia num ponto retrocedia em outro. Depois de um bom tempo o jogo estava empatado, eu de samba canção e ela de calcinha. Foi quando o bicharedo invadiu o recinto:

- Ooopa, que farra. Tá bem de corpinho, amiga.

Ela levantou. Ficou se exibindo. Pelo que os caras passavam a mão, desconfiei que não eram gays. Ela mostrava a bunda, eles metiam a mão, ela mostrava os peitos, metiam a mão, a barriga, mão. Fiquei aliviado quando ela tirou a calcinha e deram um grito:

- Aaaí, que horror. Esconde isso guria. A gente gosta mais daquele outro material.

Apontaram pra minha samba canção. Só então me dei conta: a barraca seguia armada.

O começo

Todo homem com menos de 20 anos deseja comer todo mundo. Não tem mulher que escape, não tem minuto de trégua. Se o sexo feminino é igual, eu não sei. Falo pela minha classe.

No tempo que fui hippie, tentei dar vazão ao desejo. Seguindo meu instinto entrei naquela suruba; nessa mesma pilha fui parar num motel: eu, o Carlo, a Josi, a Marta e dois amigos delas - gays.

Até hoje tento entender como aterrissei naquele quarto com toda essa gente. Lembro de chegar à festa e ficar louco de faceiro quando fiquei com a Marta; lembro do Carlo, só sorrisos, quando agarrou a Josi; e nunca vou esquecer nós dois de boca aberta, no instante que as duas começaram a se agarrar.

Depois do minuto de espanto nos abraçamos de felicidade, nos cumprimentamos de alegria. Comeríamos as duas juntas - ia ser uma farra! Passada a primeira hora, ficamos desconsolados. Elas não se desgrudavam e parecia que não ia sobrar nada para nós. Nós já estávamos sentados no meio fio, tomando uma Coca-cola, quando elas nos chamaram e perguntaram para onde íamos, os quatro. O Carlo foi ligeiro:

- Deixa comigo. Sei  para onde.

Ele foi ágil: pulou na frente de um táxi e foi empurrando o pessoal. Claro que colocou as duas para o banco de trás e me jogou no da frente. O taxista estava arrancando quando a Josi abriu a porta e saiu correndo:

- Espera, esqueci dos guris, eles vão dormir lá em casa.        

Voltou com os dois. Vi o quanto a situação era delicada quando escutei um dos amigos falar:

- Aiiiiii guriaaaas. Onde vocês vão nos enfiar?

- Arranca pro Avalon, o motel da perimetral. - O Carlo já estava com tudo planejado.

Olhei para o taxista, devia estar apavorado. Ele só olhou e disse:

- Quatro passageiros é bandeira 2.

- Toca pra lá. Toca pra lá. - ouvi o Carlo gritar.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Honestidade

A Maria Paula foi meu grande fracasso como amante, mas meu maior sucesso pedagógico - nunca alguém aprendeu tanto em tão pouco tempo.  

Depois que começou a fumar maconha, descobriu a melhor boca de fumo da cidade; depois que foi a primeira festa da filosofia, descobriu os festivais hippies mais loucos do País; quando aprendeu o amor livre, me colocou um corno atrás do outro.

Eu aguentei a primeira traição, porque achei que ela se arrependeria. Afinal, chorei um dia inteiro; ela não me trairia nem que fosse por piedade. Não aconteceu bem assim e a Paulinha escolhia os melhores momentos para fazer as confissões

- Como assim traiu? De novo?

- Rica, decidi te contar. A última vez tu não gostou e tu sabes que sou honesta.

- E tu tens que ser honesta às 2 da madrugada? Deitada na minha cama pra dormir?

- Senti angustia e queria compartilhar.

A maior sacanagem do traidor honesto é compartilhar o tesão com o outro e a angustia com a gente.

- Quero ser verdadeira, Rica. Não hipócrita, como os casais burgueses são há milhares de anos!

- Paula, por que desperdiçar anos de aprendizado do bom convívio social? Sem mais nem menos! Há anos as pessoas traem e não contam. Mudar isso agora?

- Ricardo, até parece que tu não tens tuas convicções. Tu sempre disse que o amor é livre!


- Não me venha com esse meu papo furado. Desta vez terminou! Saí da minha cama!


- Mas Rica, fiz tudo de camisinha!


- Maria Paula, saí já da minha cama. Larga meu travesseiro!  

sexta-feira, 11 de março de 2011

Mão de vaca

Gastar dinheiro é coisa de burguês. Hippie que é hippie vive na unha, longe da sociedade de consumo. No tempo de faculdade isso era bom; dinheiro nunca sobrou lá em casa. 

Enquanto eu estava no colégio o tênis velho que eu usava era motivo de tiração de sarro, na faculdade era sinal de resistência. Para a mãe foi um alívio: passei quase quatro anos sem pedir uma roupa nova, sobrava mais pra ela.

Na faculdade tinha uma turma - dos radicais - que ficava incomodando cada vez que eu ia comprar alguma coisa no bar. 

- Olha aí, já vai o Rica estimular o capitalismo e a ganância dentro da faculdade. Tu começas comprando neste bar, depois quer almoçar aí e por fim estão construindo um restaurante aqui no meio do Campus. 

- Por favor, vou comprar um pastel e um refri. Ninguém vai construir nada com os três reais que eu vou gastar. 

- É assim que começa. Por que tu não compras um pastel da Drica?

Os pasteis da Drica eram uma merda. Ela fritava os pasteis em casa para vender na faculdade. Chegavam moles, frios e enrolados num guardanapo que grudava inteiro no pastel.

O pior é que não adiantava tentar fugir dos pasteis dela, ela pressentia quando eu estava querendo comprar comida e aparecia do nada - estava sempre à espreita. Eu achava que ela era a maior capitalista do mundo vestida com saia comprida e camiseta florida. Sentia o cheiro do meu dinheiro!     

Uma vez fui ao cinema com ela. Não lembro porque entrei nesta roubada, sei que estava com aquela figura no meio do shopping. A Drica com uma das camisetas floridas até o joelho, saia comprida até a canela e uma rasteirinha; eu de camiseta com gola rasgada, calça jeans cortada na barra e alpargatas - uma bela dupla.      

Logo de início a mulher mostrou a que veio e arranjou uma confusão na bilheteria, porque não queriam dar 50% de desconto para estudantes. Disse que ia chamar advogado, colocar na justiça, pediu o regulamento do cinema - tanto fez que ganhamos o desconto. Eu fiquei feliz, com aquele desconto dava para comprar uma pipoca e um refri. Fui me encaminhando para a bomboniere do cinema quando ela me segurou pelo braço:

- Onde tu pensas que vai?

- Vou comprar uma pipoquinha pra nós. Afinal, agora sobrou uma verba.

- De jeito nenhum, esta pipoca é um crime, assalto à mão armada. Deixa comigo! Entra no cinema. 

Fui resignado, mas me queixando. A Drica sentou, me olhou e deu uma piscadela. Tirou de dentro da bolsa um saco de pipoca de microondas pronta. 
Fiquei perplexo.

Claro que aquele negócio feito no microondas há mais de duas horas já estava mole, frio e sem sal. Comi para não fazer desfeita.
No final da sessão ela ainda teve a cara de pau de me pedir uma contribuição pelo piquenique.    

quinta-feira, 3 de março de 2011

Os ortodoxos

Quando eu não ia para Lavras, passar as férias no Hiposul, acabava indo para alguma praia com a mãe. Era legal: almoço em casa todos os dias, cama arrumada e não precisava lavar roupa. Na praia a mãe se enchia de vontade e decidia fazer tudo; gostava de cuidar da casa.
Eu ficava de vadiagem, pegando uma praia e tocando violão.

Uma vez a gente foi para Garopaba - lá é uma beleza. Eu passava o dia caminhando de um lado para o outro, curtindo a paisagem e a mulherada de biquini - biquini é outra beleza. Numa das bandas conheci uma galera hippie que também estava de passagem pelo litoral de Sana Catarina.

Com eles descobri que existe uma diferença clara entre a galera metida à hippie e os caras que levam a coisa a sério. Essa turma de Garopaba era hippie de verdade, do tipo ortodoxo. Viajavam de carona, vendiam artesanato, faziam dreed para ganhar grana e tocavam música na praça por alguns trocados. Não tinham um pila no bolso e não sabiam se teriam comida na janta. Dormiam na praça ou na praia e o banho era só de mar. Eu achava aquilo tudo muito radical: banho todo dia não chega a ser coisa de burguês.

Acabei me enturmando com o pessoal, pra ganhar alguma experiência. Eu já tinha barba de respeito, cabelo que não fazia vergonha e até brinco na orelha.

O primeiro cara que me aproximei foi o Marola. Ele era uma figura: torrado pelo sol, cabelo pela cintura e usava bigodinho do tipo boliviano. O Marola não vendia artesanato, não fazia dreed e nem tocava instrumento algum na praia para ganhar uns trocos - o Marola vivia de pequenos golpes.

O grande truque do cara era simples: ele tinha várias pulseirinhas na mochila, saia pela praia oferecendo e dizia que era a "Santa Pulseira Protetora dos Pescadores". Cobrava 4 pila cada. Eu ficava impressionado como o tanto de gente boba que tem no mundo - ele vendia bastante.
Justiça seja feita, era um negociante. Convencia as pessoas que era pescador da região e que a pulseira era uma tradição local. Muitas vezes falava que não ia cobrar nada - era um presente - e quando o "cliente" amarrava a pulseira no braço ele pedia uma contribuição.

Quando o Marola chegava ao valor necessário para almoçar e comer um sorvete, do qual ele não abria mão, parava e ia ficar de vadiagem. O melhor era que ele não tinha nenhuma culpa por enganar o pessoal, ele achava que estava com a razão:    

- Marola, toma vergonha nessa cara? Fica enganando a galera!

- Rica, a minha história é quase verdade.

- Como assim? Tu nunca pescou, tu não mora em Garopaba e essa pulseira veio do Peru. Que parte da história é verdade?

- Não sei, parceiro, mas é uma história que poderia ser verdade.

O cara era foda.

Descobri o quanto ele era sem vergonha no dia que nós dois encontramos minha mãe caminhando na praia. Ela veio me perguntar sobre o almoço, acabei apresentando o Marola e ele mais que ligeiro ofereceu uma pulseira pra velha. Fiquei indignado:

- Porra Marola, é minha mãe!

- Rica, são meus negócios. A senhora pode comprar uma pulseira que protege dos perigos do mar.

- Desculpa, querido, mas eu não entro no mar, tenho medo.

- Pois então, assim a senhora toma coragem e aproveita mais a praia.

Ela acabou comprando duas. O cara era um gênio.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Maria Paula (a traição)

- Porra, Paulinha, como assim ficou com outro cara? - entre uma baforada e outra num baseado ela contava que tinha ficado com o Tonho.

- Cara, fiquei. - agora ela me chamava de cara - Não sabia que tu ias te indignar. E os teus ideais?

- Paula, primeiro, para de me chamar de cara; segundo, eu não estou indignado, eu só estou.... - Não encontrava palavras para descrever meu estado. Estava em choque, apavorado; quase chorando.

- Cara, te acalma, achei que tu ias levar numa boa. Rolou uma química entre nós e acabou acontecendo, foi só! Desculpa!

- Desculpa? Maria Paula, a gente pede desculpa se pisa no pé de alguém, se esbarra na rua, mas não quando tu metes um corno na pessoa.

- Bom, Ricardo, não tem o que fazer. Dei e ponto!

- Para de falar esta palavra!

- Qual? Cara?

- Não.

- Dei?

- Porra, Maria Paula, chega!

- Cara, nunca imaginei. Que caretice!

Maria Paula

Eu falhei como hippie, já disse isso. É um pouco repetitivo, mas alguns fracassos foram tão contundentes que essa frase não me sai da cabeça. Foi o caso da Maria Paula.

A Maria Paula fazia Letras no prédio do lado da Filosofia. Ela passava todo dia, era uma graça: cabelo comprido, liso, óculos; magra com corpão.

Na primeira vez que a gente conversou fiquei apaixonado: ela fazia o tipo certinha, tinha tido um namorado durante 5 anos e acabado o namoro há seis meses. Era do interior e cheia de ideias sobre casamento e filhos - queria terminar a faculdade o mais rápido possível para começar a trabalhar numa editora.

Desde o começo do namoro eu gostava de chocar a Maria Paula. Usava algumas frases de efeito, só para experimentar a indignação dela.

- Maria Paula, isso é lei. Homem não bate punheta pensando na namorada. É uma regra: a masturbação masculina é infiel!

- Ricardo, que horror!

- Paulinha, quer monogamia? Casa com um cisne! Eles trepam com um parceiro a vida inteira, e acho que não batem punheta!

- Ricardo, como tu és! Tu falas pelos homens. Mulher não é assim!

- Querida, como diz meu tio Nestor: mulher, quando quer te trair, tu trancas no armário e ela trepa com o cabide! Não tem jeito!

-  É muita modernidade para mim, Ricardo!

 - Tu és muito apegada aos valores de pequena burguesa. Tomar uma pessoa como propriedade privada: um absurdo!

Ela ficava chocada. Achava que eu era um grande filósofo, um pensador revolucionário.

Eu falava isso tudo porque tinha certeza que a Paulinha nunca seria capaz de trair. Os pais dela eram casados há 50 anos e diziam que eram felizes. Era mentira - óbvio - mas a Paulinha acreditava.

Com o tempo ela passou a aceitar melhor as ideias: começou a frequentar as festas da filosofia, bebia bastante, fumava maconha e até largou os óculos. Por via das dúvidas, parei de teorizar. Já era tarde.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Na direção

Quando entrei na sala da diretoria o meu atraso era o menor dos problemas. A sala estava num alvoroço; a diretora discutia com o pai de uma aluna.

Pelo que entendi, a discussão era sobre o ensino religioso no colégio. O pai da aluna era pastor evangélico e exigia uma formação religiosa. A diretora argumentava que não era possível; o reverendo não se conformava.

A coisa ia indo assim, a sala estava virando um culto:

- A senhora não tem Deus nesta escola! Como minha filha vai estar num local sem Deus? Eu exijo que esta seja uma casa do senhor!

- Meu senhor, calma! O ensino religioso não está presente nas escolas do município, mas os alunos recebem uma formação moral.

- Que tipo de formação moral?

A diretora perdeu terreno. Procurava a resposta com os olhos. Fitou o teto, desviou para a esquerda e à direita. Por fim encontrou a resposta quando me viu no canto da sala.

- Quem vai lhe responder isso é o nosso professor Ricardo. Ele leciona filosofia e moral aqui na escola.

Fui promovido rapidamente, de estagiário a professor em minutos.

O pastor não teve piedade de mim:

- Este senhor com barba por fazer e cabelos despenteados é o responsável pela moral na sua escola? Diga professor, o senhor tem Deus no coração? É religioso? Segue os preceitos de Jesus?

Minha vontade era dizer que há alguns minutos os alunos tinham visto na minha figura o próprio Jesus, que se alguém tinha autoridade para dar discurso moral naquele local era eu. Achei melhor não arriscar, o homem estava começando a ficar vermelho:

- O senhor sabe como é! A gente tenta ensinar, mas essa gurizada, não é fácil: muito faceira. Os hormônios...- Nem terminei a frase o homem virou um pimentão; a diretora começou a balançar a cabeça desesperadamente e dizia não com a boca.

- Isto é um absurdo, senhora diretora. O que vocês estão insinuando? Que minha filha é uma devassa? Eu quero que este teto caia se minha filha tem algum pensamento deste tipo. Eu quero que o teto venha abaixo neste instante! Que Deus jogue tudo sobre nós!

Sou um ateu, mas o pastor falou aquilo com tanta convicção, tanto entusiasmo, que olhei para o teto; a viga do teto ficava um passo para o meu lado esquerdo. Na dúvida deu um passinho discreto.

- Calma, senhor. O professor quer dizer que o ensino dos jovens é delicado.

- Diretora, fique sabendo que pretendo processar sua escola por injúria!

O homem saiu indignado. O meu atraso parecia tão insignificante que decidi abordar logo o assunto:

- Diretora, quanto ao meu atraso...

- Estagiário, faça um favor, saia da minha sala e de preferência esteja na hora certa na escola amanhã.