quarta-feira, 23 de março de 2011

Honestidade

A Maria Paula foi meu grande fracasso como amante, mas meu maior sucesso pedagógico - nunca alguém aprendeu tanto em tão pouco tempo.  

Depois que começou a fumar maconha, descobriu a melhor boca de fumo da cidade; depois que foi a primeira festa da filosofia, descobriu os festivais hippies mais loucos do País; quando aprendeu o amor livre, me colocou um corno atrás do outro.

Eu aguentei a primeira traição, porque achei que ela se arrependeria. Afinal, chorei um dia inteiro; ela não me trairia nem que fosse por piedade. Não aconteceu bem assim e a Paulinha escolhia os melhores momentos para fazer as confissões

- Como assim traiu? De novo?

- Rica, decidi te contar. A última vez tu não gostou e tu sabes que sou honesta.

- E tu tens que ser honesta às 2 da madrugada? Deitada na minha cama pra dormir?

- Senti angustia e queria compartilhar.

A maior sacanagem do traidor honesto é compartilhar o tesão com o outro e a angustia com a gente.

- Quero ser verdadeira, Rica. Não hipócrita, como os casais burgueses são há milhares de anos!

- Paula, por que desperdiçar anos de aprendizado do bom convívio social? Sem mais nem menos! Há anos as pessoas traem e não contam. Mudar isso agora?

- Ricardo, até parece que tu não tens tuas convicções. Tu sempre disse que o amor é livre!


- Não me venha com esse meu papo furado. Desta vez terminou! Saí da minha cama!


- Mas Rica, fiz tudo de camisinha!


- Maria Paula, saí já da minha cama. Larga meu travesseiro!  

sexta-feira, 11 de março de 2011

Mão de vaca

Gastar dinheiro é coisa de burguês. Hippie que é hippie vive na unha, longe da sociedade de consumo. No tempo de faculdade isso era bom; dinheiro nunca sobrou lá em casa. 

Enquanto eu estava no colégio o tênis velho que eu usava era motivo de tiração de sarro, na faculdade era sinal de resistência. Para a mãe foi um alívio: passei quase quatro anos sem pedir uma roupa nova, sobrava mais pra ela.

Na faculdade tinha uma turma - dos radicais - que ficava incomodando cada vez que eu ia comprar alguma coisa no bar. 

- Olha aí, já vai o Rica estimular o capitalismo e a ganância dentro da faculdade. Tu começas comprando neste bar, depois quer almoçar aí e por fim estão construindo um restaurante aqui no meio do Campus. 

- Por favor, vou comprar um pastel e um refri. Ninguém vai construir nada com os três reais que eu vou gastar. 

- É assim que começa. Por que tu não compras um pastel da Drica?

Os pasteis da Drica eram uma merda. Ela fritava os pasteis em casa para vender na faculdade. Chegavam moles, frios e enrolados num guardanapo que grudava inteiro no pastel.

O pior é que não adiantava tentar fugir dos pasteis dela, ela pressentia quando eu estava querendo comprar comida e aparecia do nada - estava sempre à espreita. Eu achava que ela era a maior capitalista do mundo vestida com saia comprida e camiseta florida. Sentia o cheiro do meu dinheiro!     

Uma vez fui ao cinema com ela. Não lembro porque entrei nesta roubada, sei que estava com aquela figura no meio do shopping. A Drica com uma das camisetas floridas até o joelho, saia comprida até a canela e uma rasteirinha; eu de camiseta com gola rasgada, calça jeans cortada na barra e alpargatas - uma bela dupla.      

Logo de início a mulher mostrou a que veio e arranjou uma confusão na bilheteria, porque não queriam dar 50% de desconto para estudantes. Disse que ia chamar advogado, colocar na justiça, pediu o regulamento do cinema - tanto fez que ganhamos o desconto. Eu fiquei feliz, com aquele desconto dava para comprar uma pipoca e um refri. Fui me encaminhando para a bomboniere do cinema quando ela me segurou pelo braço:

- Onde tu pensas que vai?

- Vou comprar uma pipoquinha pra nós. Afinal, agora sobrou uma verba.

- De jeito nenhum, esta pipoca é um crime, assalto à mão armada. Deixa comigo! Entra no cinema. 

Fui resignado, mas me queixando. A Drica sentou, me olhou e deu uma piscadela. Tirou de dentro da bolsa um saco de pipoca de microondas pronta. 
Fiquei perplexo.

Claro que aquele negócio feito no microondas há mais de duas horas já estava mole, frio e sem sal. Comi para não fazer desfeita.
No final da sessão ela ainda teve a cara de pau de me pedir uma contribuição pelo piquenique.    

quinta-feira, 3 de março de 2011

Os ortodoxos

Quando eu não ia para Lavras, passar as férias no Hiposul, acabava indo para alguma praia com a mãe. Era legal: almoço em casa todos os dias, cama arrumada e não precisava lavar roupa. Na praia a mãe se enchia de vontade e decidia fazer tudo; gostava de cuidar da casa.
Eu ficava de vadiagem, pegando uma praia e tocando violão.

Uma vez a gente foi para Garopaba - lá é uma beleza. Eu passava o dia caminhando de um lado para o outro, curtindo a paisagem e a mulherada de biquini - biquini é outra beleza. Numa das bandas conheci uma galera hippie que também estava de passagem pelo litoral de Sana Catarina.

Com eles descobri que existe uma diferença clara entre a galera metida à hippie e os caras que levam a coisa a sério. Essa turma de Garopaba era hippie de verdade, do tipo ortodoxo. Viajavam de carona, vendiam artesanato, faziam dreed para ganhar grana e tocavam música na praça por alguns trocados. Não tinham um pila no bolso e não sabiam se teriam comida na janta. Dormiam na praça ou na praia e o banho era só de mar. Eu achava aquilo tudo muito radical: banho todo dia não chega a ser coisa de burguês.

Acabei me enturmando com o pessoal, pra ganhar alguma experiência. Eu já tinha barba de respeito, cabelo que não fazia vergonha e até brinco na orelha.

O primeiro cara que me aproximei foi o Marola. Ele era uma figura: torrado pelo sol, cabelo pela cintura e usava bigodinho do tipo boliviano. O Marola não vendia artesanato, não fazia dreed e nem tocava instrumento algum na praia para ganhar uns trocos - o Marola vivia de pequenos golpes.

O grande truque do cara era simples: ele tinha várias pulseirinhas na mochila, saia pela praia oferecendo e dizia que era a "Santa Pulseira Protetora dos Pescadores". Cobrava 4 pila cada. Eu ficava impressionado como o tanto de gente boba que tem no mundo - ele vendia bastante.
Justiça seja feita, era um negociante. Convencia as pessoas que era pescador da região e que a pulseira era uma tradição local. Muitas vezes falava que não ia cobrar nada - era um presente - e quando o "cliente" amarrava a pulseira no braço ele pedia uma contribuição.

Quando o Marola chegava ao valor necessário para almoçar e comer um sorvete, do qual ele não abria mão, parava e ia ficar de vadiagem. O melhor era que ele não tinha nenhuma culpa por enganar o pessoal, ele achava que estava com a razão:    

- Marola, toma vergonha nessa cara? Fica enganando a galera!

- Rica, a minha história é quase verdade.

- Como assim? Tu nunca pescou, tu não mora em Garopaba e essa pulseira veio do Peru. Que parte da história é verdade?

- Não sei, parceiro, mas é uma história que poderia ser verdade.

O cara era foda.

Descobri o quanto ele era sem vergonha no dia que nós dois encontramos minha mãe caminhando na praia. Ela veio me perguntar sobre o almoço, acabei apresentando o Marola e ele mais que ligeiro ofereceu uma pulseira pra velha. Fiquei indignado:

- Porra Marola, é minha mãe!

- Rica, são meus negócios. A senhora pode comprar uma pulseira que protege dos perigos do mar.

- Desculpa, querido, mas eu não entro no mar, tenho medo.

- Pois então, assim a senhora toma coragem e aproveita mais a praia.

Ela acabou comprando duas. O cara era um gênio.