quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Festa de família

Por mais que a tia Judite fosse chata, acabou sendo uma pós-graduação para suportar eventos que reúnem mais de oito pessoas, onde cinco delas tem mais de 75 anos e três, no mínimo, pensam ter intimidade para dar palpite na nossa vida.

Nos meus 12 anos como aspirante a hippie eu passei por duas reuniões familiares que me deram segurança para encarar (rindo!) qualquer banca de pós- doutorado; na Alemanha, se fosse o caso.

Um destes testes aconteceu quando nasceu meu irmão, filho do meu pai, o Bruno. O pai ficou tão feliz que mandou convidar a mãe e a vó para a festa do batizado.

Convidei achando que era jogo ganho. Elas nunca iam querer viajar até Lavras para ver o filho do meu pai.

- Mãe, o pai vai batizar o Bruninho. Mandou convidar tu e a vó. Imagina ir até Lavras! Um absurdo!

Elas toparam. Fomos nós três e um solitário dread que eu tinha feito na semana anterior. Decidi não tirar, por convicção.

Na igreja foi tudo bem. O Bruninho me salvou: chorou três horas sem parar. O garoto é de fé, lutador da resistência.

Meu problema começou no almoço. Por uma força do destino - chamada mãe - eu sentei entre as minhas duas avós. Uma de cada lado. Eu no meio.

Naquela hora rezei, apesar de não ser religioso. Agarrei-me na primeira estrofe do Pai Nosso, que é a única que sei. Quando sentei à mesa repetia uma a cada colherada. Depois, quando as duas começaram a conversar, olhando por cima de mim, uma a cada mordida. Quando começaram a falar do meu cabelo larguei os talheres, engoli a comida e rezei como nunca.

Não adiantou. Quem reparou primeiro foi minha avó materna, a vó Flora:

- Meu neto! O que é isso aqui?! Olha Lurdes Maria, esse emaranhado de cabelo!

- Meu Deus, Maria e José! Meu senhor Jesus Cristo! Tem um bicho no teu cabelo!

Voltei a ser criança. Olhei para a mãe pedindo socorro. A vó Flora foi mais rápida:

- Minha filha. O que é isto na cabeça do Ricardo??

- Não sei, mãe. Pergunta para ele.

Golpe baixo. Fiquei só com a verdade à mão:

- Vó Flora , Vó Lurdes: isto é um dread! Um enfeite no cabelo!

- Isto é para bonito? Então tem alguma coisa de errado no teu! Não está funcionando!

As duas caíram na risada. Esqueceram a comida e passaram o resto da tarde fuçando na minha juba.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Tia Judite

As festas de família foram criadas pelas forças conservadoras da sociedade e são o meio mais eficaz de controle social. Seu principal agente de regulamentação são as tias. Elas estão sempre na espreita, procurando os desgarrados. Possuem estratégia aprimorada.

As festas são o maior obstáculo para as nossas escolhas. É impossível escapar ileso dos 80 anos de um tio, do casamento das primas ou do enterro da irmã mais velha da vó.

Na minha família eu tinha um algoz: a tia Judite. A tia não podia me enxergar sem perguntar: “e tu, meu filho, que estás fazendo da vida?”. Se falássemos dez vezes na festa, ela perguntaria a mesma coisa. Se eu reclamava, alegava esquecimento.

O mais constrangedor era quando ela me via entre um grupo de primos. Chegava com cronograma preparado. Não fazia a pergunta a esmo: entrevistava primeiro os primos com profissão regulamentada, depois buscava, em ritmo torturante, os desajustados. Por último, eu ou o primo Tonhão.

A tortura era típica das pessoas boas. Tortura no elogio. Veneno talhado na bondade.

- Aqui estão os meus orgulhos! O Carlos vai salvar essa minha dor de dente. O Jorginho é a nossa segurança. Médico na família é indispensável! Só faltava um advogado. Sempre achei que seria o Ricardo, tão inteligente. Pena! Mas tudo bem. O que tu estás fazendo da vida, meu filho?

Por causa da tia Judite eu e a mãe tivemos algumas brigas:

- Como tu não vais passar o ano novo com a família?

- Mãe, não vou! Vou ficar em casa, curtir o Faustão da virada.

- Meu filho, tuas primas vão estar todas lá! – A mãe sempre usava o argumento das primas.

- A Belinha?

- Claro. A Belinha, a Ju, a Carol, todas. – A velha sabia das coisas, eram todas primas de segundo grau, que para mim não são parente.

- Pois é, mãe. Quem sabe? E a tia Judite?

- Claro, a tia também.

- Mãe, não vou e pronto.

- Meu filho, tu estás virado em um rebelde!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Vegetariano

Depois do incentivo dos meus pais para fazer terapia procurei um profissional. Não foi difícil encontrar um bacana. Eu gostava do cara. Não concordava com tudo que ele falava, mas o homem tinha ideias interessantes.

- Ricardo, parece que tu procuras os caminhos mais complicados para trilhar!

A mãe concordava com ele. Ela disse a mesma coisa quando eu avisei que não comia mais carne, tinha virado vegetariano.

- Meu filho, tu estas sempre atrás de garoa com vento!

Em minha defesa, argumento que virei vegetariano depois de assistir a um documentário que mostra como os animais são abatidos. Fui assistir na maior boa vontade. Quem me convidou foi uma colega. Ela era hippie. Usava saia comprida, sandália e umas camisetas coloridas; a moça era uma graça. Ela que veio puxar assunto.

- Tu sabias que este salgado tem presunto?

- Não sabia, achei que era mortadela. Presunto é uma beleza.

- Mortadela também é carne. Fico pensando quantos animais são mortos para fazer este presunto. Pobre dos animais! Tem um documentário no cinema sobre isto, quer ver?

- Claro.

Fui ao cinema achando que no final quem ia comer alguém era eu. Esta história de comer carne dá ideia na cabeça da gente. Doce ilusão.

O filme foi horrível. Era vaca levando tiro, porco gritando e galinha presa em cubículo. Eu saí do cinema passando mal, a carnificina ainda descia pelas tripas quando a colega convidou:

- Vamos comer uma pizza? Eu quero calabresa!

Fui até a pizzaria. Percebi o que acontecia quando vi as rodelas de calabresa nadando no queijo. Não me contive:

- E o filme que acabamos de ver? Tu ficaste com pena do presunto que eu comi na faculdade e agora vai comer calabresa?

- Sai desta, Rica. Não dá para levar tão a sério.

- Esta rodelinha de calabresa é uma daquelas vacas. Essa rodelinha levou um tiro na cabeça!

- Acho que não. Calabresa é feita de porco.

- Pior! Essa rodelinha é um porco daqueles que gritavam desesperados.

- Rica, se tu não queres, não come. Eu estou com fome.

Naquela noite decidi não comer mais nada: nem a moça, nem a calabresa. Passei vergonha separando as rodelinhas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Entressafra

Tem uma fase da vida em que a gente não come ninguém. É difícil. Não me refiro a uma má fase (normal na vida de qualquer um) quando não se transa por alguns meses. Acontece antes; logo depois de ter perdido a virgindade, talvez depois de emplacar a segunda, é o tempo da entressafra. A gente passa um sufoco!

- Parece que o Fulano comeu alguém.

- Não acredito. Quem?

- A prima de não sei quem.

- Não conheço. Me apresenta

Quando a turma fica sabendo que alguma guria deu, brota a esperança. As conhecidas também vão dar. Mulheres costumam chamar isso de machismo, preconceito, deveriam ser mais compreensivas, é necessidade.

Nas minhas terras a entressafra foi um pouco mais longa. Só não posso dizer que era virgem no primeiro ano de faculdade, porque eu tinha tido aquela história com a Claudinha. Ela era esforçada; mas uma andorinha só não faz verão.

Foi neste afã que comecei a namorar a Regência. Eu achava que qualquer guria que estivesse fazendo filosofia ia ser liberal. O pessoal careta faz Direito ou Medicina, estas coisas que dão dinheiro. Porque se a gente não vai ganhar grana, ao menos que trepe bastante. Foi um erro. Alvejei o dardo longe do alvo. Eu devia ter desconfiado: os livros que a Rê carregava não podiam ser bom presságio.

A primeira vez que nós ficamos foi numa festa da turma. Eu já tinha bebido umas três latinhas de cerveja e fumado um pouco da tal maconha. Ocupei meu canto de sempre e assumi minha postura de predador no combate: um sorriso de baseado na cara e um embalinho que mostrava que estava por dentro da música (a música não fazia diferença, o embalinho era universal, servia de Bob Marley até The Doors).

Eu vi a Rê passar na minha frente. Ataquei:

- Cerveja?

- Não, obrigada. Não bebo.

Os sinais eram claros. Devia ter desconfiado que não comeria a Rê desde o primeiro dia.

- Ricardo, eu não concordo com a posição do professor quanto ao argumento ontológico da existência de Deus.

- Esse professor não sabe nada.

- Não é para tanto. Mas fico pensando: a essência precede a existência? O que é acidental e o que é essencial no ser?

Eu não entendia nada que a Rê falava, mas tinha uma estratégia para montar frases que fossem enigmáticas o bastante para camuflar minha ignorância. Era parecido com o embalinho universal.

- Eu acho que o acidental é a essência da existência do ser.

- É uma postura corajosa.

- Eu sou corajoso.

Neste dia foi fácil ficar com Rê, eu estava inspirado, convenhamos. Tentar o arremate é que exigiu toda a minha vã filosofia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Discussão Familiar

Sempre achei que meu pai era como a torre do jogo de xadrez (ao menos como eu imagino a torre no xadrez). Ela fica lá, parada, meio figurativa, quase coadjuvante, até resolver atacar. Quando decide, é um estrago.

Naquele dia, no Hiposul, eu estava só esperando. Enquanto abríamos o mercado eu escutava ele resmungar. Levantando a porta de ferro escutei ele murmurar, enquanto fazia força: “PT, nãããão”. Depois, arrumando as frutas na frente do mercado: “PT, PT, PT”.

Eu passei o dia atrapalhado. Errei no troco, derrubei nas frutas, deixei o leite fora da geladeira. Ele não aliviava. Uma reclamação já seria um descanso na culpa. Mas só olhava, levantava a sobrancelha e dizia:

-Éééé.

A conversa só recomeçou na volta para a casa:

- Então, Ricardo. Que história é essa de terapia?

Achei inteligente. Começamos pelo assunto mais fácil e, de leve, abordamos o difícil.

- Ideia da mãe. Ela acha que pode ajudar. Cada uma, não?

- É uma ideia boa.

- Desde quando?

- Pode ajudar nesta questão do PT!

- Como assim? PT é política, não resolve em terapia.

- Como tu sabes? Tu nunca fizeste terapia! Isto pode ser um problema, sim. Não é normal! Um guri saudável, virar PT! Tu disseste que virou PT ou PP?

- PT.

- Pena. Diz para a tua mãe que eu apoio a terapia. Procura uma em conta, que isso é problema simples de resolver. Cortando este cabelo resolve metade da questão.

-Certo. Não precisa dizer mais nada.

- Combinado. Imagina se teu tio descobre uma coisa destas.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Política Privada 2

Todos os anos, nas férias, eu visitava meu pai em Lavras. Na infância era uma alegria. Tinha vaca, cavalo, ovelha e no pátio do Hiposul um milharal. Depois que entrei na faculdade a coisa perdeu o encanto. A desconfiança do pai crescia junto com o meu cabelo; que ficava cada mês maior.

No ano que virei PT decidi não ir. Era melhor ficar no sítio em Viamão. Deitado na rede, comendo fruta do pé, lendo alguns livros. Quem sabe até aquele do Foucault. Afinal, Lavras é longe, a viagem é cansativa e o pai não ia entender esse negócio de PT.

O problema é que a mãe andava desconfiada. Ela sempre foi esquerda, mas estava preocupada. Tinha medo que meu comunismo fosse vagabundagem e que por ideologia eu não quisesse trabalhar. É a tal da Microfísica do Poder.

A coisa tomou proporções uma vez que ela me mandou procurar emprego nos classificados e, ingenuamente, respondi:

- Mãe, trabalhar nunca matou ninguém, mas convém não arriscar.

Ela nem riu. Fez um barulho com a boca, misto de “mmmmm” e “iiiiiii” e olhou com o canto do olho. Dias depois fez um telefone sem fio com o pai.

- Ricardo, falei com o teu pai. Essas férias tu vais para Lavras. Já fala com ele sobre a terapia e sobre esse negócio de PT.

Cheguei a Lavras às 6 horas da manha e ele me buscou na rodoviária antes de abrir o Hiposul, às 7:30. Tentei prender o cabelo com rabo de cavalo para ver se amenizava o impacto. Como tinha decidido não prolongar o sofrimento larguei tudo de uma vez:

- Pai, a mãe acha que eu preciso de terapia e virei PT.

Pronto, falei. Talvez ele tivesse um infarto, quem sabe eu herdava o Hiposul?

- Quê? Que terapia, Ricardo? Que PT? PT!? Que PT? Aqui não tem PT! Nem terapia!

- Virei PT, pai. Fazer o quê?

- Ninguém vira PT, Ricardo. Tu sempre foste PSDB, não pode ser PT. Tu já viste gremista virar colorado? Claro que não! Essas coisas não se fazem! É proibido!

O homem era bom de lógica.

- Aconteceu. Já fui até em passeata.

- Quê!? Que passeata? Passeata de quê? Aqui não tem passeata! Ricardo, tu não sabes nem quem é o candidato do PT à presidência!

- É o Lula!

- O Lula. Essa é fácil. Ele é candidato desde que tu nasceu.Tu não é PT e acabou!

Chegamos ao Hiposul e abrimos o mercado juntos. A conversa não tinha sido ruim, minha mesada seguia intacta.

Política Privada

Em época de eleição a gente ouve que o importante para o país é a alternância de poder e a pluralidade de opiniões. Quem fala isso esquece o quanto o dia-a-dia de cada cidadão influência na política.

Quando eu estudava filosofia todo mundo falava de um livro chamado ‘Microfísica do Poder’, do Foucault. Eu nunca li, mas gosto do título. Lembra estas coisas que acontecem no cotidiano e invadem a vida pública.

Um exemplo foi quando virei PT. Precisei prestar atenção em coisas básicas, como minhas roupas. Era impossível seguir indo para a faculdade do mesmo jeito. Afinal, eu era dos radicais, tinha o Barba ao meu lado, e coisa que esta galera da luta patrulha é vestimenta.

Interroguei meu guarda-roupa. Calça jeans velha, meio rasgada. Boa. Tênis All Star, não tinha melhor. Camiseta? Não achei adequada. Um problema. Nenhuma vermelha, nenhuma do partido. Sem camiseta do partido eu não ia parecer um dos radicais. Ia ser centro-esquerda, galera que não está com nada, não é da luta.

Lembrei que a mãe tinha uma camiseta vermelha com estrela no peito, ridícula. Ia servir:

- Mãe, cadê aquela camiseta vermelha com estrela no peito?

- Não sei. Faz horas que não uso.

- Pois quero ver se me serve. Estou engajado na luta. Sou PT.

- PT? Desde quanto?

-Sei lá, desde segunda. Cadê a camiseta?

- Ricardo, PT? Tu não sabes nem quem são os senadores do Rio Grande do Sul.

- Tem mais de um?

- Três.

- Quanta gente. Mãe, primeiro preciso me fardar, depois vejo detalhes. Cadê a camiseta?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pai

Na minha família a gente sempre fez aquela brincadeira do telefone sem fio. É aquela brincadeira que um fala pro outro, que fala pro outro, que fala pro outro e no final dá tudo errado. Lá em casa era igual: eu contava para a minha mãe e ela contava para o meu pai. No final a brincadeira saía certinho. O pai entendia tudo torto e eu tinha que me dobrar nas explicações.

Para deixar claro, os meus pais nunca foram casados. Ele mora em Lavras e tem um mini-mercado, o Hiposul. O Hiposul abre às 7h e 30min e fecha às 20h. Eu sei toda a rotina do mercado, ouvi uma porção de vezes. O papo sempre começa por: “Meu filho, tu sabe de que horas a que horas eu trabalho?”, e segue com uma longa explicação da árdua semana de laboro dele, que, às vezes, inclui os sábados.

Quando eu decidi fazer filosofia a mãe me deu um apoio, fez um telefone sem fio:

- Olha, o Ricardo escolheu um curso meio estranho. Espera, ele te conta.

- Filosofia, pai. Filosofia.... FI-LO-SO-FIA.

- Acho que eu estou ouvindo errado, Ricardo. O telefone aqui de casa deve estar com problema. Vem para Lavras que a gente se entende melhor.

Desliguei o telefone. Quando olhei para a mãe, ela estava indo na direção do computador

- Mãe, o pai quer que eu vá para Lavras.

- Imaginei. Já estou comprando a passagem na internet.

A mãe sempre foi a mão amiga na hora difícil.

Fui no final de semana. Eu e o pai tivemos uma conversa racional, pesando os prós e contras de fazer o curso:

- Ricardo, eu decidi, tu vais fazer Direito! Filosofia e Direito são iguais, a diferença é que quem se forma em Filosofia é filósofo, ou seja, nada. E não tem trabalho.

- Não é bem assim, pai.

- Ricardo, realiza: tu, filósofo! Filósofo faz o quê, Ricardo?

- Pensa! Pai, eu vou fazer Filosofia!

- Tudo bem, vai ser Filósofo. Vou reduzir tua grana. Pensar é de graça!

Pronto. Problema resolvido com o pai. A questão, agora, era com a velha. O argumento da redução do dinheiro era muito usado: a mãe não gostava muito.