segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

6ª série

Não foi a toa que decidi ser hippie; podia ter sido punk, metaleiro ou grunge, mas optei pela hippongagem porque tenho o espírito tranquilo: gosto de ficar na boa, sem muita algazarra.

Nos primeiros dias de aula descobri que isto era impossível numa 6ª série. Tentei manter a respiração constante e a harmonia dos chácaras; quase deu certo:

- Pessoal, vamos conversar. Gabriel, senta, meu querido. Gabriel, por favor, larga teu colega. Gabriel, pelo amor de Deus, saí daí, porra!! - Eu desafio qualquer monge budista a manter a paz numa 6ª série; se ele conseguir eu coloco o Gabriel para dentro da sala.

Na terça-feira que acordei às pressas fui dar aula para a turma do Gabriel, em dia de chuva não tinha pátio, o recreio era na sala de aula - os alunos ficavam enlouquecidos.

No trajeto até a escola fiz vários trabalhos de meditação, repassei mentalmente meu grande amor pela humanidade, pensei nas condições sócio-econômicas difíceis dos alunos, na responsabilidade social militante do PT e no meu pequeno contracheque. Quando cheguei à escola já estava até empolgado; com vontade de fazer um trabalho diferente.

Entrei na sala, o Gabriel me olhou, levantou as mãos para o céu e gritou, "Jesus! Jesus voltou!!", se jogou no chão, fingiu um ataque epilético e veio rastejando até mim. Ajoelhado, com as mãos levantadas para o céu, ele implorava, "Nosso professor é Jesus, me dá a mão Jesus, me dá a mão". Ficou ali uns cinco minutos, a cabeça próxima do meu pé, pensei em dar um pequeno chute, coisa pouca, de leve - não seria para machucar, só para entrar na brincadeira.

- Gabriel, por favor, pro teu lugar.

Ele foi rindo, a turma toda alucinada. Comecei a escrever no quadro, toda vez que me virava lá estava o querido, com as mãos levantadas pro céu, como se estivesse fazendo uma prece.

Aguentei 50 minutos deste tormento, quando encerrou a manhã ainda tinha que bater um papo com a diretora.

Trabalho

A coisa mais chata no trabalho é ter que ir todos os dias. Não é como o colégio ou a faculdade que dá para faltar de vez em quando; no trabalho as pessoas contam com a nossa presença, acreditam na responsabilidade.

Eu demorei a entender isso. A primeira vez que faltei na escola, como professor, foi numa terça-feira chuvosa: acordei 6:15 da matina e era dia de dilúvio, a temperatura devia estar em torno dos 10 graus; era um despautério ir trabalhar; uma falta de respeito fazer as crianças levantarem naquelas condições. Voltei para a cama e às 8:15 a diretora do colégio ligou para o meu celular. Qualquer pessoa recém acordada é uma ingênua:

- Ricardo Monteiro?

- Ahhh...

- Aqui é Lurdes Terezinha.

- Aha.

- Ricardo, estou querendo saber se tu estás com algum problema. Estamos te esperando aqui na escola. Tu vens?

- Escola? E a chuva?

- Está forte. O senhor está gripado?

- Não, estou bem, e a senhora?

- Professor, eu estou bem, obrigada. Quero saber se o senhor pode chegar aqui às 10 :15 para dar aula na 6ª série.

- Diretora, 6ª série? Com esta chuva?

- Professor Ricardo, convenhamos. Estou lhe esperando na escola às 10 horas na aula da 6ª série e ao meio dia aqui na minha sala para conversarmos. Um abraço.

Levantei tonto e com frio na barriga: minha relação com a 6ª série não era das melhores.