terça-feira, 23 de novembro de 2010

Professor em Lavras

Assumi como professor estagiário do município na segunda-feira e no sábado já estava em Lavras: o pai fez questão que eu fosse dar as boas novas para a família. Ele era só orgulho e queria tripudiar na tia Neca. O filho mais novo da tia dizia que ia ser médico; estava na oitava série e a tia já contava vantagem - o pai ficava puto:

- Aquele piá, médico? Duvido! Aquilo é um burro, vai acabar trabalhando no Hiposul! Sem ofensa, Nestor.

O Nestor era irmão do pai. Nunca trabalhou e com 60 anos conseguiu uma aposentadoria; para complementar a renda era segurança noturno no Hiposul, morava nos fundos e fazia a vigia.

Para o comemorado jantar de sábado convidamos o Tio Nestor, a Tia Neca, os filhos e o marido dela. As coisas não saíram como o esperado. O pai não imaginava que eu seguia com os meus ideias, pensou que agora, empregado, eu estava conformado. Não imaginava que acordar às 6 da manha incendiava meu comunismo. Agora eu era PT por convicção.

- Pai, é um abuso uma jornada de trabalho de 40 horas! Exploração do ser humano!

- Ricardo, tu estas te queixando do quê? Trabalhas 20 horas.

- Não é esta a questão. A burrice é começar a trabalhar 7:30 da manha! Sacrifício para quê? Para que ficar carregando cruz? Era só combinar: todos começam às 9 horas. A sociedade está mal administrada.

A tia não aguentava, a preocupação da vida dela eram os filhos:

- Meu Deus, Ricardinho. Não começa a colocar ideia na cabeça dos meus guris. O Zé já está estudando tanto para tirar medicina, fez o simulado semana passada. Vocês sabem que as professoras dele já dizem que…

Quando a tia começava com este papo o pai não aguentava:

- Neca, a questão aqui não é o vestibular do Zé, daqui há mil anos. A questão é a oportunidade do Ricardo! Que ideias são essas, meu filho? Um funcionário público!

- Pai, é uma agressão acordar com um despertador. Uma agressão!

- Deus que me perdoe, tampa os ouvidos Zézinho.

Quando a tia ficava nervosa começava a fazer sinal da cruz, o que deixava o pai indignado:

- Neca, tem mosca na mesa que tu estas te abanando? Ricardo, tu tens que aprender o valor do trabalho. Acordar cedo não tira pedaço. Trabalhar nunca matou ninguém!

- Mas convém não arriscar.

O tio Nestor não tinha falado nada a noite toda, acho que o tio não tinha falado nada a semana toda, e saiu com essa. Um gênio disfarçado.

Ninguém falou mais nada: o pai resmungou o resto da noite; a tia saiu com toda a família antes da sobremesa; eu fui para a varanda tomar cerveja com o tio, ouvir mais algumas palavras de sabedoria. Ele não disse mais nada. Contou do desempenho do time do Bagé no último Gaúchão - ouviu tudo no rádio.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Chato

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O chato é uma espécie que não está em extinção. Existem desde o começo da humanidade e marcarão presença no fim. Dão palpites há milênios: estavam lá quando o homem descobriu o fogo, dizendo para não misturar com água; estavam lá quando o homem pisou na lua, avisando, “O pé direito, pisa primeiro com o direito!!”; e estavam, aos montes, na minha faculdade.

Quando o chato assume uma ideologia ele fica insuportável. Na universidade tinha muito chato que virou hippie. Era um pessoal que falava manso, mostrava um olhar profundo e, quando encontrava conhecido, dava aquele abraço demorado encostando todo o corpo.

O pior de todos era o Rangel - ele era completo: sabia tudo, interrompia qualquer conversa para dar explicações e amava todos os seres da terra. O pior chato é o afetuoso.

O Rangel estava sempre falando do cosmos, da energia e tentando mostrar os benefícios da meditação. Quando avistava um conhecido, não exitava: levantava e ia até lá dar um grande abraço; perguntava como a pessoa estava e oferecia uma série de conselhos - sempre olhando nos olhos, com os dedos cruzados na frente do corpo, como se estivesse rezando. Era um mala!

O meu pior encontro com o Rangel aconteceu num banheiro. Quando eu entrei, ele já estava lá. Havia dois mictórios, um bem pertinho do outro. Pela quantidade de cerveja que eu tinha tomado, não ia dar para segurar. Me aproximei, pedi licença e tentei mijar. Todo homem sabe que não é fácil mijar em mictório, ainda mais um grudado no outro. Às vezes, o mijo tranca. Tentei concentrar, estava quase conseguindo, quando o Rangel deu um gemido:

- Ahhhh, que beleza. É a energia reciclando! Pode sentir isso, Rica?

- Tentando.

- Concentra, Rica, concentra. Um prazer que só a cerveja dá. Este mijo infinito. Alterna, faz o fluxo ficar mais forte - ouvi o barulho do mijo do Rangel bater mais forte na laje do mictório- agora, segura, diminui a intensidade, até terminar.

Ele terminou, olhou para mim, colocou a mão no meu ombro (ele ainda não tinha lavado a mão) e disse:

- Que experiência que nós compartilhamos, companheiro!

- Rangel, eu não mijei ainda.

Ele olhou fundo nos meus olhos, fez cara de compreensivo e incentivou:

- Força, companheiro.

O homem era um chato, mas era um gênio: conseguia inspirar fundo, falar e mijar ao mesmo tempo. Eu não conseguia nem mijar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Professor II

Fui à secretaria de educação para tomar satisfações do ocorrido. Aquela convocação era uma vergonha: eu não tinha experiência nenhuma como professor. O que aconteceu com o critério da experiência profissional? Eles não tinham o mínimo de organização naquela espelunca?

Quem falou comigo, foi a psicóloga responsável pelo recrutamento. Uma moça bem acima do peso, loira, com uma camiseta escrito “I LOVE NY”. Passamos direto para a mesa dela.

- Ricardo Monteiro? Novo professor substituto do Município? Vou te contar um segredo: fui a encarregada da tua seleção. - Quando ela terminou de falar, sorriu para mim e deu uma piscada.

Não entendi nada: será que a gordinha estava de sacanagem?

- Ricardo, foram muitos inscritos. Mais de quinhentos estudantes dos cursos de licenciatura. Muita gente das letras e da matemática. - Acabou a frase e largou outro sorriso, outra piscadela.

Comecei a ficar indignado. O que a gordinha quer com esse sorriso para cima de mim? Mostrar que têm todos os dentes da boca? Dizer que minha barbada acabou?

Pensei que ela tinha me aprontado uma: olhou meu currículo, percebeu que não constava nenhuma experiência profissional, viu minha barba na foto e não teve dúvidas: "Vou colocar este barbado para trabalhar". Já não bastava uma mãe no mundo?

Fiquei indignado com a injustiça.

- Escuta, e a senhora não costuma dar valor ao currículo?

- O currículo não diz tudo sobre uma pessoa. A foto, às vezes, é fundamental! – deu outra piscadela.

A gordinha queria dar para mim! Inacreditável: ninguém nunca queria dar para mim. Quando acontece, é justo a gorda da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Foda!

Tentei ponderar, eu não iria comer ela de jeito nenhum, quem sabe ela me liberava.

- Escuta, senhora psicóloga, as coisas não funcionam bem assim. Como a senhora vê, eu estava muito bem naquela foto, mais gordinho, reforçado. Dei uma bela decaída no último mês.

Ela inclinou o corpo para perto de mim – achei que ia me beijar -, mas falou com voz baixa, em forma de confidência:

- Vou te contar um segredinho: decidi variar nesta seleção. O critério era sempre igual, só pessoal da matemática ou das letras. Todo mundo só olha o currículo. Decidi abrir oportunidades para o pessoal com cabeça mais arejada. Chamei três da filosofia desta vez! Eu não aceito discriminação! Gostei do teu jeito, barba comprida, despojado!

Ela afastou o corpo, reclinou a cadeira, sorriu e deu outra piscadela.

Era isso, as piscadelas não significavam nem broma, nem sexo. Significavam que nós éramos cúmplices na revolução da Secretaria da Educação; estávamos reformando o mundo pelo conhecimento. É pra matar!

Tentei dissuadi-la. O mundo tinha vindo tão bem até aqui, por que inovar agora; por que inovar comigo?

- Psicóloga – vi o nome no crachá – Elenara, será que é boa ideia? Fico honrado com a escolha, mas a experiência profissional é importante.

- Ricardo, eu sei que vocês da filosofia vão fazer um bom trabalho. Comprei uma briga aqui na Secretaria pensando em vocês. A educação precisa de mudança e eu quero fazer parte desta transformação!

Minha sina era ser revolucionário. O mundo fazia questão!

Professor

Eu dou azar até quando caio na sorte.

Foi assim quando decidi fingir que estava buscando emprego: fui à Secretária de Educação e me inscrevi para o estágio como professor substituto. Corria na boca pequena que era jogo ganho: a chance de ser chamado era nula. Escolhiam dez de quinhentas; o principal critério era o currículo, com a minha experiência de trabalho eu estava tranquilo.

Bolei o plano: fazia a inscrição, mostrava aquela expectativa em casa e depois, quando não fosse chamado, desilusão total – até poderia reclamar do País, que não dava oportunidade para o jovem.

Cheguei fazendo alarde:

- Mãe! Chega de moleza. Me inscrevi para ser professor substituto no Município. Quero ajudar no quadro social.

- Mas, meu filho, escola municipal não é perigosa?

- Mãe, o importante é o trabalho. O trabalho dignifica o homem - eu estava com tudo – vou avisar o pai!

Ela ficou orgulhosa, liguei para o velho no mesmo dia.

- Isso aí, pai. Estamos na disputa, torcendo. Tem que ter fé! É concorrido, mas com meu currículo, quem sabe?

- Colocou no teu currículo o trabalho aqui no Hiposul?

- Que Hiposul, pai. Ficou maluco?

- Ricardo, caso tu não sabias, vendedor é um tipo de professor. Ele ensina o que é melhor para comprar.

- Sem briga, torce por mim.

Foi a semana mais sossegada do tempo de faculdade. O pai ligava de dois em dois dias e a mãe era só mimos. Tudo uma beleza, até que tocou meu celular:

- Alô, Ricardo Monteiro? Aqui é da Secretaria de Educação, estamos ligando pela tua inscrição para o estágio como professor.

Fiquei ligeiramente tonto.

- Tu conseguiste a vaga, Ricardo.

Sentei, a panqueca de espinafre do almoço subiu até o peito.

- Aqui consta que tu vais lecionar pela manha, das 07h30min às 12h30min, para que tu possas estar na faculdade de tarde. Confere?

O pudim terminou de empurrar a panqueca, quase vomitei. Pensei: vou recusar. Mas a mãe estava parada na minha frente e quando viu minha cara de espanto atirou a pergunta:

- É da prefeitura? – Intuição materna é foda!

Fiz que sim com a cabeça; ela me pegou desprevenido.

- Conseguiste a vaga?

Fiz outro gesto afirmativo. Ela saiu pulando, vibrava, me deu beijos. Saiu correndo pela casa, ouvi os gritos lá dos fundos:

- Eu vou ligar para a tua avó. Avisa teu pai. Parabéns, meu filho!

Minha vida terminava ali!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mesa de bar 2

barkamikaze

A Jéssica achou graça e veio sentar na nossa mesa. Ela fazia mestrado nas Ciências Sociais e nos conhecia de vista da faculdade.

Assim que ela sentou começamos a disputa. Com o Marcão era assim, ele não aliviava - mulher na mesa era guerra. O assovio para o garçom era prova de fogo; o erro uma total desmoralização.

No começo do papo já achei que era luta perdido, ela tinha um broxe do MST. O Marcão ia grudar reforma agrária nela. Fiquei esperando... nada. Então percebi que ele estava sem óculos, não via o que estava escrito no broche. Voltei para a luta, tracei minhas estratégias: só precisava manter o papo dentro dos limites seguros.

Comecei a emendar uma piada na outra, contei todas que conhecia e assumi um risco: deixei que ele chamasse todas as cervejas, assoviava magnânimo para o garçom, era o macho da mesa; mas eu rondava a gata.

Ele ficou confuso, investia sem ter um rumo certo:

- Tu estas no mestrado das Ciências Sociais. Interessante. Há pouco vi uma reportagem sobre a Rússia e as reformas que aconteceram por lá. Repensei um pouco estas questões pelo viés trotskista…

Senti o perigo, não sei nada da Rússia, mas acho que lá teve reforma agrária. Estava tudo por um fio, fiz um ataque kamikaze:

- Marcão, meu velho, tu que é bom nisso, dá um grito para o garçom trazer mais uma cerveja.

Ele olhou espantado, achou que eu entregava os pontos; recuperei a atenção da gata.

No meio da noite a vitória parecia minha, o Marcão tomava a cerveja em goles grossos para logo chamar outra. Chamava o garçom com assobio, com grito, mão espalmada no ar, um dedo só; era uma festa, mas quem ganhava terreno era eu. Fiquei tão cheio da mim que avancei além das minhas trincheiras:

- E tu fazes mestrado em que?

- No Movimento sem Terra, não viu meu broche? 

O Marcão chegou a derrubar o copo. Olhou para o broche incrédulo, abriu um sorriso e começou.

A conversa foi até de manha, pelo que ele me contou. Eles nem perceberam quando abandonei o campo de batalha. 

Mesa de bar

O sexo move o mundo acadêmico. As teorias e dissertações são um disfarce; intelectual estuda para comer gente! É uma questão de seleção natural: quem não comia ninguém na adolescência começa a ler para conseguir destaque.

Eu era um desses. Vivia em bar com a turma, falava difícil e discutia filmes antigos. A gente só tomava cerveja barata e se o bar começasse a encher com pessoas novas a gente mudava de bar.

Nessa época meu grande amigo era o Marcão, colega da faculdade.

Para tomar cerveja com o Marcão precisava estar atento: qualquer frase rendia uma tese. Depois que ele começava só calava a boca se passasse uma mulher.

Com o tempo estabeleci uma relação infalível entre os temas preferidos do Marcão e algumas partes do corpo feminino. Era assim: questão dos índios brasileiros, bundas grandes; o FMI e a dívida externa, bundas médias ou peitos grandes; questões da existência humana (o ser e o nada), peitos de qualquer tamanho ou coxas grossas; reforma agrária, só se uma mulher sentasse no colo do Marcão. Ele adorava a reforma agrária.

No dia em que nós conhecemos a Jéssica ele estava inspirado: eu tinha escapado de decidir se o Governo devia pagar a dívida externa com o FMI e se a FUNAI devia ser mais incisiva com os fazendeiros do norte, graças a uma morena que levantou para ir ao banheiro.

Era uma noite perigosa, qualquer deslize e ficaríamos a noite inteira emprenhados nos rumos do Brasil. Procurei manter o foco:

- Marcão, fora esta questão do FMI, que calor fez hoje, não?

- Tu sabes o que é isso, Rica?

Senti o perigo, tentei escapar:

- O sol?

- Isso é o aquecimento global. Não sei se tu sabes, mas o aquecimento é uma resultante da ganância humana, que diferente do que pensam nossos colegas não é uma questão natural do homem, mas foi construída historicamente, principalmente na Europa. Os índios brasileiros…

Papo de índio brasileiro. Foda! Recorri o bar com os olhos, nenhuma bunda grande - nada! – nem mesmo média. Fiquei prisioneiro dos Guaranis dez minutos, até a Jéssica entrar. A bunda não era grande, os peitos que eram enormes. Não era o ideal para a situação; arrisquei.

Leve movimento com o queixo, apontando o alvo. Ele olhou e achou interessante; virou todo o corpo. Chegou a cair da cadeira.