quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Professor II

Fui à secretaria de educação para tomar satisfações do ocorrido. Aquela convocação era uma vergonha: eu não tinha experiência nenhuma como professor. O que aconteceu com o critério da experiência profissional? Eles não tinham o mínimo de organização naquela espelunca?

Quem falou comigo, foi a psicóloga responsável pelo recrutamento. Uma moça bem acima do peso, loira, com uma camiseta escrito “I LOVE NY”. Passamos direto para a mesa dela.

- Ricardo Monteiro? Novo professor substituto do Município? Vou te contar um segredo: fui a encarregada da tua seleção. - Quando ela terminou de falar, sorriu para mim e deu uma piscada.

Não entendi nada: será que a gordinha estava de sacanagem?

- Ricardo, foram muitos inscritos. Mais de quinhentos estudantes dos cursos de licenciatura. Muita gente das letras e da matemática. - Acabou a frase e largou outro sorriso, outra piscadela.

Comecei a ficar indignado. O que a gordinha quer com esse sorriso para cima de mim? Mostrar que têm todos os dentes da boca? Dizer que minha barbada acabou?

Pensei que ela tinha me aprontado uma: olhou meu currículo, percebeu que não constava nenhuma experiência profissional, viu minha barba na foto e não teve dúvidas: "Vou colocar este barbado para trabalhar". Já não bastava uma mãe no mundo?

Fiquei indignado com a injustiça.

- Escuta, e a senhora não costuma dar valor ao currículo?

- O currículo não diz tudo sobre uma pessoa. A foto, às vezes, é fundamental! – deu outra piscadela.

A gordinha queria dar para mim! Inacreditável: ninguém nunca queria dar para mim. Quando acontece, é justo a gorda da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Foda!

Tentei ponderar, eu não iria comer ela de jeito nenhum, quem sabe ela me liberava.

- Escuta, senhora psicóloga, as coisas não funcionam bem assim. Como a senhora vê, eu estava muito bem naquela foto, mais gordinho, reforçado. Dei uma bela decaída no último mês.

Ela inclinou o corpo para perto de mim – achei que ia me beijar -, mas falou com voz baixa, em forma de confidência:

- Vou te contar um segredinho: decidi variar nesta seleção. O critério era sempre igual, só pessoal da matemática ou das letras. Todo mundo só olha o currículo. Decidi abrir oportunidades para o pessoal com cabeça mais arejada. Chamei três da filosofia desta vez! Eu não aceito discriminação! Gostei do teu jeito, barba comprida, despojado!

Ela afastou o corpo, reclinou a cadeira, sorriu e deu outra piscadela.

Era isso, as piscadelas não significavam nem broma, nem sexo. Significavam que nós éramos cúmplices na revolução da Secretaria da Educação; estávamos reformando o mundo pelo conhecimento. É pra matar!

Tentei dissuadi-la. O mundo tinha vindo tão bem até aqui, por que inovar agora; por que inovar comigo?

- Psicóloga – vi o nome no crachá – Elenara, será que é boa ideia? Fico honrado com a escolha, mas a experiência profissional é importante.

- Ricardo, eu sei que vocês da filosofia vão fazer um bom trabalho. Comprei uma briga aqui na Secretaria pensando em vocês. A educação precisa de mudança e eu quero fazer parte desta transformação!

Minha sina era ser revolucionário. O mundo fazia questão!

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