quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Entressafra

Tem uma fase da vida em que a gente não come ninguém. É difícil. Não me refiro a uma má fase (normal na vida de qualquer um) quando não se transa por alguns meses. Acontece antes; logo depois de ter perdido a virgindade, talvez depois de emplacar a segunda, é o tempo da entressafra. A gente passa um sufoco!

- Parece que o Fulano comeu alguém.

- Não acredito. Quem?

- A prima de não sei quem.

- Não conheço. Me apresenta

Quando a turma fica sabendo que alguma guria deu, brota a esperança. As conhecidas também vão dar. Mulheres costumam chamar isso de machismo, preconceito, deveriam ser mais compreensivas, é necessidade.

Nas minhas terras a entressafra foi um pouco mais longa. Só não posso dizer que era virgem no primeiro ano de faculdade, porque eu tinha tido aquela história com a Claudinha. Ela era esforçada; mas uma andorinha só não faz verão.

Foi neste afã que comecei a namorar a Regência. Eu achava que qualquer guria que estivesse fazendo filosofia ia ser liberal. O pessoal careta faz Direito ou Medicina, estas coisas que dão dinheiro. Porque se a gente não vai ganhar grana, ao menos que trepe bastante. Foi um erro. Alvejei o dardo longe do alvo. Eu devia ter desconfiado: os livros que a Rê carregava não podiam ser bom presságio.

A primeira vez que nós ficamos foi numa festa da turma. Eu já tinha bebido umas três latinhas de cerveja e fumado um pouco da tal maconha. Ocupei meu canto de sempre e assumi minha postura de predador no combate: um sorriso de baseado na cara e um embalinho que mostrava que estava por dentro da música (a música não fazia diferença, o embalinho era universal, servia de Bob Marley até The Doors).

Eu vi a Rê passar na minha frente. Ataquei:

- Cerveja?

- Não, obrigada. Não bebo.

Os sinais eram claros. Devia ter desconfiado que não comeria a Rê desde o primeiro dia.

- Ricardo, eu não concordo com a posição do professor quanto ao argumento ontológico da existência de Deus.

- Esse professor não sabe nada.

- Não é para tanto. Mas fico pensando: a essência precede a existência? O que é acidental e o que é essencial no ser?

Eu não entendia nada que a Rê falava, mas tinha uma estratégia para montar frases que fossem enigmáticas o bastante para camuflar minha ignorância. Era parecido com o embalinho universal.

- Eu acho que o acidental é a essência da existência do ser.

- É uma postura corajosa.

- Eu sou corajoso.

Neste dia foi fácil ficar com Rê, eu estava inspirado, convenhamos. Tentar o arremate é que exigiu toda a minha vã filosofia.

2 comentários:

  1. Oi, Ricardo,

    muito bom, o seu blog!
    Agora, sempre que um amigo diz "se tudo der errado, viro hippie", passo o seu link e alerto: "olha, não é assim tão fácil..."

    Um abraço,
    Ana Fernanda

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  2. Ana F.
    O pessoal costuma achar que é fácil. É bom alertar!
    Abraço, Rica

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